Entrevista

Sistema português para tratamento da insuficiência renal crónica é um dos melhores do mundo

Atualizado: 
28/03/2022 - 15:20
Estima-se que uma em cada 10 pessoas no Mundo sofra de insuficiência Renal Crónica, uma condição que todos os anos atinge mais de 2000 pessoas em Portugal. Em entrevista ao Atlas da Saúde, o Professor Serafim Guimarães, nefrologista no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, faz um retrato da doença renal crónica no país, sublinhando que, apesar do impacto socioeconómico inerente, o seu tratamento – seja através da hemodiálise ou da diálise peritoneal – consegue “promover uma reabilitação muito aceitável”, quando comparado ao tratamento de outras insuficiências orgânicas.

Estima-se que, em Portugal, existam cerca de 800 mil doentes renais e que, todos os anos, surgem mais de 2000 novos casos de insuficiência renal crónica. Partindo destes números, a que conclusões podemos chegar? Será que andamos a dar a devida atenção à saúde dos nossos rins? Que erros andamos a cometer?

O facto de termos uma elevada prevalência de insuficiência renal crónica decorre da elevada prevalência de doença cardiovascular, uma vez que a doença renal é uma expressão da própria doença cardiovascular. O elevado número de pessoas com doença renal crónica, nas suas diversas fases, não é muito diferente do dos países ocidentais onde há elevada prevalência de doença cardiovascular. Os 2000 novos casos que refere dizem respeito à fase da doença renal crónica em que se torna necessária a substituição da função renal.

Embora possam existir fatores hereditários que contribuem para o aumento do risco, que outros fatores estão associados à patologia?

Normalmente, os fatores de risco associados à doença cardiovascular têm a ver com a hipertensão, o sedentarismo, a obesidade, a prevalência de diabetes, que é causa e consequência, o tabagismo e colesterol alto. Tendo em conta que todos os fatores de risco de doença cardiovascular são também fatores de risco para insuficiência renal, estes fatores têm implicações para ambos os casos. Estes são fatores que estão muito relacionados com o estilo de vida ocidental.

A prioridade deve mesmo passar por ter atenção aos maus hábitos, ao sedentarismo, à hipertensão, ao tabagismo e à alimentação, especialmente ao consumo de sal. Ter atenção aos fatores de risco de doença cardiovascular que levam a insuficiência renal. Claro que há uma percentagem de pessoas que têm doença renal por motivos hereditários, contudo, não é a maioria.

Quanto a sintomas, e sabendo que em fases iniciais a doença pode ser assintomática, a que sinais devemos estar atentos? Quando devemos procurar o médico?

O problema da doença renal relativamente aos sintomas prende-se precisamente com o facto de esta ser uma doença silenciosa até fases muito adiantadas. Esta doença manifesta-se por alterações analíticas que muitas vezes a pessoa não conhece. Coexiste ainda com outras doenças, nomeadamente a doença cardiovascular, a diabetes e a hipertensão arterial. Por exemplo, as pessoas medem a tensão e sabem que são hipertensas, mas se não a medirem ao longo de uma vida, não o sabem. Há uma célebre regra das metades: de todos os hipertensos, apenas metade sabem que o são; desses, apenas metade estão medicados; desses, apenas metade estão controlados. Além disso, podem existir alterações urinárias, no entanto, quando elas surgem já existe lesão renal. Obviamente, a maioria das pessoas não fazem análises regulares para detetar isso.

Devemos procurar o médico sempre, mas acima de tudo devemos ter uma vida saudável e uma preocupação com os fatores de vida que têm a ver com os nossos hábitos. Não aconselharia as pessoas a irem todos os meses ao médico sabendo que estão saudáveis, claro, mas é importante monitorizar a sua saúde. Por isso, podemos formular as coisas deste modo: hábitos de vida saudável ajudam a poupar o rim.

Ainda que a sua incidência seja maior nos adultos e idosos, a doença renal também pode afetar crianças. Nestes casos, quais as causas associadas? Os fatores de risco são os mesmos? E a partir de que idade por ser diagnosticada?

A doença renal que afeta as crianças tem mais a ver com malformações renais, infeções recorrentes devido a alterações do aparelho urinário, doenças hereditárias e com outras doenças imunológicas, problemas mais estruturais, sendo que há bebés com doença renal, o que significa que esta doença pode ser diagnosticada em qualquer idade.

Como é feito o seu diagnóstico?

No caso de uma pessoa que faz regularmente análises, iríamos detetar alterações urinárias numa fase precoce da doença. Depois, a doença renal crónica como disfunção renal deteta-se através da subida da análise da creatinina, e também a ureia, que vai subindo paulatinamente ao longo da vida de uma pessoa.

Apesar de o tratamento depender do estádio em que se encontra o doente, que opções terapêuticas existem? Quais as principais diferenças entre hemodiálise e a diálise peritoneal?

Quando é feito este diagnóstico, passa a haver um reforço da vigilância destes fatores de risco cardiovascular (hipertensão, sedentarismo,

tabagismo, consumo de sal) e ainda a vigilância das análises ao sangue e à urina.

Numa fase mais avançada, quando o doente já tem 30 ou 25% de função renal, podem surgir problemas específicos, aos quais chamamos de complicações da doença renal, que estão relacionadas com a anemia, alterações no metabolismo ósseo, alterações do cálcio, fósforo, potássio e da acidez do sangue. Estas complicações requerem tratamento específico e é nesta fase que é pertinente ser um nefrologista a seguir o doente.

Mas a hipertensão, geralmente, surge ainda antes disso. Portanto, sempre que o doente é hipertenso, é importante que seja tratado.

Mais à frente, há uma fase muito avançada na qual a vida não é possível sem uma substituição da função renal e, para isso, existe o transplante, a hemodiálise e a diálise peritoneal.

Na hemodiálise existe uma máquina com um “filtro” (a que chamamos dialisador), que filtra o sangue, fazendo com que as toxinas que o rim não consegue excretar sejam removidas. Há sangue que sai do corpo, é filtrado e volta a entrar. Também se aplica uma diferença de pressões para remover a água em excesso. Normalmente, o tratamento standard passa pela ida das pessoas a uma clínica 3 vezes por semana, 4 horas de cada vez. A maior parte das pessoas vão a clínicas ou hospitais e, portanto, e o procedimento é todo realizado com a supervisão de profissionais.

A diálise peritoneal utiliza o peritoneu, que é uma membrana que reveste as nossas vísceras abdominais e tem propriedades de filtração. Através de um cateter, que se coloca no abdómen, é introduzido um líquido chamado “solução dialisante”. O contacto desse líquido dialisante com o sangue que circula nos vasos peritoneais também promove a filtração das toxinas e água. Ao fim de algum tempo, atinge-se um equilibro de concentrações, e o movimento de solutos deixa de acontecer. Está na altura de deitar esse líquido fora e reinfundir novo líquido. Este processo tem que ser realizado 3 a 4 vezes por dia. Existe também uma variante da diálise peritoneal que faz estas trocas durante a noite – dialise peritoneal automática, que se destina aos doentes que necessitam de trocas com mais frequência.

A grande diferença passa pelo facto de a hemodiálise ser realizada descontinuamente, tendo de se usar as veias do braço ou um cateter, com a ajuda de profissionais. A autodiálise (que é a diálise feita pelo próprio) tem pouca expressão. Já a diálise peritoneal, que se faz através da barriga, é realizada pelo próprio doente e, com as sucessivas trocas, acontece durante 24 horas por dia. São técnicas diferentes para o mesmo fim e são adotadas no mesmo estádio da doença: o estádio 5, em que o organismo precisa de substituição da função renal.

E não se pode fazer hemodiálise em casa?

Quando falamos em hemodiálise em casa, falamos de toda uma complexidade técnica que é possível, mas complicada do ponto de vista económico. Ainda assim, idealmente, se fosse feita em casa, seria muito mais confortável para o próprio paciente, sendo que isto poderia ser feito através de investimento e simplificação dos processos.

Qual o impacto que estes tratamentos têm na vida do doente? E qual o impacto socioeconómico da Doença Renal Crónica?

Esta doença tem um impacto muito grande, altera a vida completamente. A pessoa fica dependente de um tratamento, pois caso não o faça o estado de saúde degrada-se muito rapidamente. É toda uma mudança no estilo de vida. A semana tem 168 horas e para estes doentes quase 10% deste tempo corresponde à hemodiálise. Os doentes que fazem diálise peritoneal são mais autónomos, uma vez que escolhem controlar a própria doença. Têm de fazer as trocas de líquido 3-4 vezes por dia, ou então ficar na cama várias horas durante a noite ligados à máquina para ela fazer as trocas. Ou seja, qualquer que seja o tipo de tratamento, acaba sempre por ser uma constrição para a liberdade das pessoas.

Uma pessoa que tenha de deixar de trabalhar, ou que prejudica o seu trabalho ou passa a ser dependente, acaba por sofrer o impacto socioeconómico em si e na sua família. Há uma espécie de luto que se faz porque se perde autonomia e obviamente que com isso vem revolta. Muitas vezes demora a recuperar e muitos nunca chegam a recuperar. Há pessoas que sempre dominaram a sua vida em termos pessoais e familiares e com esta doença acabam por ficar dependentes, mudam-se os papéis familiares, etc.

Tecnicamente, a hemodiálise pode fazer-se em casa, mas é complexa e o modelo económico em que está inserida não favorece isso, porque foi desenhado para que este tratamento seja feito em clínicas, e tem cumprido a sua função. Além disto, uma máquina que na clínica dá para 6 doentes, em casa só dá para uma. Da mesma forma, se um enfermeiro estiver numa clínica auxilia 5 a 6 pessoas por turno, mas em casa só auxilia uma. Por outro lado, a hemodiálise tem exigências técnicas muito sofisticadas, tendo de haver uma estação de tratamento de água, porque a água tem de ser muito pura, o que é fácil de compreender, pois é colocada em íntimo contacto com o sangue do doente.

A hemodiálise, por muito difícil que seja para o doente, é uma técnica que tem a capacidade de promover uma reabilitação muito aceitável. Quando comparamos os doentes renais que precisam de hemodiálise com doentes com outras deficiências em órgãos vitais, como insuficiência cardíaca, doença respiratória grave, cegueira, paralisia, a reabilitação que a hemodiálise tem conseguido nestes 55 anos é muito aceitável. Além disso, o sistema português é dos melhores do mundo.

Para terminar, que conselhos gostariam de deixar à população em geral sobre este tema?

É crucial tratar da saúde, ter hábitos saudáveis, fazer exercício físico, não comer sal em excesso… O mundo ocidental transformou o ser humano num animal de cativeiro e a biologia não nos preparou para isso. A doença cardiovascular resulta de uma desadequação do nosso estilo de vida, que passa por viver em apartamentos, utilizar o elevador, passar o dia sentado em frente a uma secretária e andar de carro. Temos de tentar contrariar isto. Esta é mais prevalente no mundo ocidental devido ao estilo de vida que temos, com uma pequena exceção das doenças hereditárias, que existem e têm outro tipo de origem, e grande parte das pessoas que têm doença renal não estão incluídas nessa exceção. Não é depois aos 40, 50 ou até 60 anos, quando começa a aparecer a hipertensão, as alterações urinárias, etc., que se vai evitar a doença. Aí só conseguimos fazer com que ela evolua mais devagar, mas as alterações já aconteceram e não são reversíveis. Como tal, a vida saudável evita a doença cardiovascular, a diabetes, a doença renal, o AVC e todas as outras doenças cardiovasculares.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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