Entrevista

Rui Tato Marinho: «No espaço de 10 anos vão surgir 100 mil portugueses com cancro do cólon e reto»

Atualizado: 
04/06/2021 - 12:11
No âmbito do Mês da Saúde Digestiva, e para perceber como está a saúde digestiva dos portugueses, o Atlas da Saúde esteve à conversa com o presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Rui Tato Marinho, que deixou um alerta: em 10 anos vão surgir 100 mil portugueses cancro do cólon e reto. Com especial enfoque na problemática da obesidade, um fator de risco acrescido para a doença oncológica, o especialista mostra por que é urgente mudarmos os nossos hábitos de vida.

Sabendo que a pandemia Covid-19 terá tido um tremendo impacto na saúde digestiva dos portugueses, no que diz respeito ao diagnóstico e tratamento de algumas patologias, pergunto-lhe, mais de um ano após o primeiro confinamento, quantas consultas ficaram por realizar e quantos diagnósticos por ficaram por fazer?  

Relativamente às consultas, houve a hipótese de realizar consultas por telefone e por telemedicina. Não são o mesmo que as consultas presenciais, o acto médico completo implica a observação, mas em muitos casos de segundas consultas, de consultas de vigilância, é possível substituir as consultas presenciais. As consultas não presenciais vieram para ficar. No nosso Centro Hospitalar (CHULN), a gastrenterologia, não reduziu o número de consultas, fizemos quase 25.000 durante o último ano.

Os dados que temos relativamente a um dos exames principais, a colonoscopia, é que terá existido atraso. Através das vendas de produtos de limpeza intestinal, terão ficado perto de 90-100.000 exames por fazer. No entanto já estamos a fazer um grande esforço para recuperar o que ficou atrasado.

Neste sentido, quais as patologias que mais se agravaram durante este período?

Em média, em 2019, morreram por mês cerca de 9300 portugueses. Nalguns meses em 2020 e 2021 morreram quase 13.000 portugueses. É lícito pensar que nalguma desta mortalidade em excesso estejam doenças do Aparelho Digestivo, à semelhança de doenças do foro cardíaco, oncológico, etc.

Em termos gerais, e no que diz respeito à saúde digestiva, o que se perdeu irremediavelmente com esta pandemia?

Algumas mortes em excesso, mas ainda não há dados precisos e detalhados. É uma consequência adicional da Pandemia e das suas ondas de choque. As razões são várias, incluindo receio da população de se deslocar aos Serviços de Saúde.

O que seria necessário fazer para reverter ou minimizar esta situação?

Psicologia positiva, planear do ponto de vista estratégico. Precisamos de reequipar alguns Serviços com novos aparelhos e dispositivos. O País tem recursos humanos, isto é, gastrenterologistas para recuperar doentes que estejam com dificuldade em acesso.

Para além da Covid-19, e sabendo que a grande maioria das doenças digestivas estão associadas aos hábitos de vida, o que falta para verdadeiramente as prevenirmos?

Passar a mensagem da prevenção, diagnóstico precoce para as doenças do Aparelho Digestivo: prevenção no aspeto da promoção dos estilos de vida saudável, alimentação saudável, exercício físico.

É obrigatório para todos os portugueses sem exceção a realização do rastreio do cancro do cólon aos 45-50 anos.

Neste sentido, e sabendo que a obesidade é um dos problemas que mais contribuem para mau prognóstico da saúde digestiva, quais os principais erros que cometemos à mesa e não só? Que patologias podem surgir associadas ou como complicação da obesidade?

A dieta ocidental dita mediterrânica está um pouco desvirtuada: há um excesso de calorias não só no que diz ao consumo de fritos, molhos, carnes vermelhas, açúcar, bolos, bebidas açucaradas. Falta também o investimento no exercício físico regular, nem que seja caminhar rápido três vezes por semana. Se mais portugueses cumprissem esta meta, eramos um povo bem mais saudável.

As patologias associadas à obesidade são a obstipação (2 milhões de portugueses, a doença de refluxo (3 milhões), pedras na vesícula (litíase biliar) 1.5 milhão, o fígado gordo (2.5 milhões), 40.000 com hepatite C, 25.000 com doença de Crohn ou Colite Ulcerosa e os cancros do aparelho digestivo, designadamente o cancro do fígado, do cólon e o do pâncreas.

A obesidade é claramente oncogénica, traz consigo um risco acrescido de cancros. E não apenas do Aparelho Digestivo.

De um modo geral, entre todas as patologias que acometem o aparelho digestivo, quais as que mais atingem a população portuguesa e destas quais as mais graves?

As referidas na pergunta anterior. De qualquer modo quero chamar a atenção para o peso dos cancros digestivos, que constituem 1/3 de todos os cancros, incluindo os casos mortais. Ou seja, 1 em cada 10 portugueses morrem de cancro digestivo, mais do que um por hora.

Relativamente a número de novos casos, a chamada incidência, todos os anos se registam quase 11.000 novos casos de cancro do cólon (também chamado de intestino grosso), enquanto para o cancro da mama e da próstata não chega a 7.000. Ou seja, no espaço de 10 anos vão surgir 100.000 portugueses com cancro do cólon e reto que não estava à espera.

No que diz respeito aos cancros digestivos, qual a importância dos rastreios para o bom prognóstico de algumas destas patologias? Nomeadamente no cancro colorretal, qual a diferença que pode fazer um rastreio? E por que motivo, ainda são poucos aqueles que o decidem fazer?

O rastreio salva vidas, reduz o número de mortes por este cancro. O rastreio é obrigatório para todos os portugueses aos 50 anos. Más já há quem recomende por volta dos 45 anos, ou mais cedo que tiver familiares diretos na Família. Existem dois métodos de rastreio, o sangue oculto nas fezes em que a própria pessoa colhe as suas fezes para depois serem analisadas e a colonoscopia. O importante é fazer um dos métodos, pelos 45-50 anos. Ambos salvam vidas.

Faria sentido ou seria possível rastrear outros tipos de cancro?

Relativamente aos cancros do aparelho digestivo não faz sentido para a população em geral, à exceção do cancro do cólon e reto que tem que ser para todos os portugueses sem exceção. Poderá pensar-se para os outros cancros, mas não para a população em geral: nalguns casos de cancro do pâncreas familiar, nalguns casos de lesões do estômago ditas pré-malignas; e em quem tem cirrose hepática deve fazer uma ecografia de 6/6 meses. Mas rastreios para a população em geral apenas o do cancro do cólon e reto.

No que diz respeito às doenças inflamatórias do intestino, o que explica o aumento de casos?

Não se sabe muito bem, eventualmente alterações da dieta, com alimentos cada vez mais processados, alterações do microbioma, etc. O que é facto é que aumenta 5% por ano.

Ainda no âmbito destas doenças – Doença de Crohn e Colite Ulcerosa – quais os grupos de risco e a que sinais devem estar atentos?

São duas entidades que afetam fundamentalmente os ditos adultos jovens com 20-40 anos, pessoas em plena fase da vida, com muita atividade formativa, profissional, familiar e social. Estima-se que possam existir em Portugal 25.000 pessoas com estas duas entidades. O impacto é muito elevado na qualidade de Vida, não afeta apenas a própria pessoa, afeta os seus familiares e as empresas onde trabalham. Eu diria que impacta a vida de 25.000 portugueses, na sua maioria jovens e 25.000 famílias e todo o seu agregado familiar.

Os sintomas que podem indicar a presença de doença de Crohn ou Colite Ulcerosa são a diarreia que não passa em meia dúzia de dias, a perda de sangue nas fezes, as cólicas abdominais, perda de peso, febre, etc. Com estes sintomas as pessoas devem dirigir-se a um Serviço de Urgência, ao Médico de Família, procurando ser visto por um gastrenterologista logo que possível.

No âmbito do Mês da Saúde Digestiva, que iniciativas a SPG irá levar a cabo?

Divulgação nas redes sociais, nos meios da comunicação social, elaboração de material informativo para o público em geral com infografias, pequenos filmes, chamada de atenção para o novo site da Saúde Digestiva.

Temos um mote que é chamar a atenção para a Saúde Digestiva com os seus vários aspectos de literacia em saúde, prevenção, diagnóstico precoce, rastreio, tratamento, cura, ajuda ao sofrimento, etc.

Mas o foco principal será a relação e as consequências da Obesidade com o Aparelho Digestivo. A obesidade é uma verdadeira pandemia global, que vai matar muito mais pessoas que o COVID.

Para terminar, e de um modo geral, considera que os portugueses dão a devida atenção à sua Saúde Digestiva?

Sentimos que a situação está a melhorar, a sociedade em geral está cada vez mais informada quanto aos 10 metros do seu tubo digestivo, dos seus problemas, das consequências do seu mau funcionamento, das causas de morte, etc.

Mas neste ano, vamos insistir nas múltiplas consequências da obesidade no Aparelho Digestivo e do papel do especialista do Aparelho Digestivo (gastrenterologista) na ajuda à qualidade de Vida e em evitar o sofrimento e até a morte precoce.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
SPG