Das causas ao tratamento

O que precisamos saber sobre a Urticária

Atualizado: 
08/11/2021 - 10:50
Afetando maioritariamente o sexo feminino, estima-se que entre 15 a 25% da população sofra, em algum momento da vida, de um episódio de Urticária. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Célia Costa, Assistente Hospitalar Graduada de Imunoalergologia, explica tudo o que precisamos saber sobre uma doença que, embora comum, pode ser extremamente incapacitante.

Apesar de ser uma doença comum, estimando-se que afete entre 15 a 25% da população em algum momento da vida, em qualquer idade, a urticária pode ser incapacitante. De modo, a ajudar a sensibilizar a população para o tema, peço que nos explique que doença é esta e como se manifesta?

A Urticária é uma síndrome heterogénea com uma grande variedade de causas subjacentes, desencadeadas por uma diversidade de fatores, com uma apresentação clínica variável, que se caracteriza pelo aparecimento de lesões cutâneas máculo-papulares, angioedema ou ambos. As lesões máculo-papulares são áreas de eritema circunscrito, discretamente elevado, de centro claro, com forma e tamanho variável (1 a 2cm até 50cm), pruriginosas (por vezes sensação de queimadura), que desaparecem à digito-pressão e têm um carácter transitório e migratório, com a pele a regressar ao seu aspeto normal num período inferior a 24 h, sem deixar lesão residual, podendo surgir em qualquer zona do corpo, em número variável. O angioedema é um edema súbito e acentuado da submucosa ou da derme inferior e hipoderme, geralmente de grande dimensão, assimétrico e de tonalidade clara, mais doloroso do que pruriginoso e com uma resolução mais lenta, podendo demorar até 72 horas, que surge mais frequentemente nas pálpebras e nos lábios, mas pode também afetar mãos, pés, genitais, língua, mucosa da cavidade oral ou trato respiratório superior. Cerca de 50% dos doentes apresentam máculo-pápulas, 40% têm máculo-papulas e angioedema simultaneamente e 10% apenas angioedema 1-4.

Quais as principais causas associadas à Urticária?

A Urticária é multifatorial e as causas subjacentes mais frequentes dependem do tipo de urticária em causa, daí o seu correto diagnóstico ser fundamental através uma criteriosa história clínica e cuidado exame objetivo médico. Trata-se de uma doença induzida pela libertação contínua de vários mediadores pró-inflamatórios pelos mastócitos cutâneos, salientando-se a histamina, que por sua vez levam à ativação dos nervos sensoriais, à vasodilatação, ao aumento da permeabilidade vascular e ao recrutamento de células inflamatórias secundárias adicionais, responsáveis pelos sintomas manifestados. Os fatores que ativam os mastócitos são diversos e de natureza heterogénea, alguns ainda desconhecidos, e distintos nas diferentes formas de Urticária. A Urticária aguda é na maioria dos casos idiopática, ou seja, de causa desconhecida e que surge uma vez na vida e nunca mais aparece. No entanto, a urticária aguda pode estar associada a infeções agudas do trato respiratório, gastrintestinal e/ou urinário (sobretudo na idade pediátrica) causadas por Vírus, Bactérias ou Parasitas; hipersensibilidade a fármacos, em que qualquer fármaco potencialmente pode causar urticária aguda embora os AINEs (Anti-inflamatórios Não-Esteróides) e os antibióticos do grupo dos beta-lactâmicos sejam os mais frequentes; alergia a alimentos, em que qualquer alimento pode estar envolvido; picadas de insetos, entre outros. Relativamente à urticária crónica, dependendo do tipo de urticária, a sua etiologia ainda é mais complexa e multifatorial, podendo ocorrer na presença de um fator causal exógeno, físico ou não, ou sem nenhum fator externo mas desencadeada pela ativação do sistema imunitário por diferentes tipos de mecanismos autoimunes ou outros, podendo também estar associada a doenças autoimunes de orgão (doença autoimune da tiroide ativa) e/ou sistémicas, processos inflamatórios crónicos ou infeções crónicas (bacterianas, virais, parasitárias, fúngicas), entre outros fatores1-5.

Sabendo que existem vários tipos de urticária, e que esta pode ser classificada aguda ou crónica, o que as distingue, quais os tipos mais frequentes e aquele(s) que causam um maior impacto na qualidade de vida dos doentes?

A urticária classifica-se em urticária aguda, se tem uma duração até 6 semanas e urticária crónica (UC) se a duração for igual ou superior a 6 semanas. A UC subdivide-se em urticária crónica indutível (UCInd), se um fator causal exógeno, físico ou não, for identificado e urticária crónica espontânea (UCE), designada anteriormente de urticária crónica idiopática, quando não se identifica um estímulo externo. A UCInd, com distintas expressões (dermografismo sintomático, urticária ao frio, urticária retardada por pressão, urticária solar, urticária ao calor, urticária/angioedema vibratório, urticária colinérgica, urticária de contacto e urticária aquagénica), pode coexistir com a UCE, num mesmo doente. A UCE é a forma mais comum de UC (60 a 80% dos casos) e acompanha-se de angioedema em cerca de 40-50% dos doentes, estando neste caso associada a um curso mais prolongado tal como quando coexiste com UCInd. A UC pode surgir com sinais/sintomas diários ou quase diários ou com um curso intermitente / recorrente. A UCE pode recorrer meses ou anos após remissão. A UCE quando não controlada, é a que condiciona uma diminuição significativa da qualidade de vida (QoL) dos doentes, devido aos seus sintomas potencialmente incapacitantes que podem persistir por vários anos e afetar vários aspetos da vida diária a nível físico, emocional, social e económico, demonstrado em estudos de vida real nacionais e internacionaisl1-10

No que diz respeito à urticária crónica espontânea, que mecanismo estão por trás do seu desenvolvimento? Quais as principais complicações que lhe estão associadas? (qual o seu impacto na vida do doente?)

A fisiopatologia da UCE é complexa, multifatorial e vários mecanismos têm vindo a ser descritos1-4. Nas pápulas da UCE há sinais de desgranulação dos mastócitos e eosinófilos, ativação das células endoteliais, ativação da cascata da coagulação sanguínea sem lesão vascular, mas extravasamento de plasma e recrutamento de células inflamatórias (eosinófilos, neutrófilos, basófilos, linfócitos T e macrófagos). Os fatores que ativam os mastócitos são diversos e de natureza heterogénea, ainda mal conhecidos e possivelmente distintos nas diferentes formas de UCE. Pensa-se que a ativação patológica dos mastócitos em doentes com UCE, ocorre através de dois mecanismos principais: defeitos de sinalização intracelular (por ativação inadequada de moléculas como a tirosina quinase esplénica (SYK) ou a inibição de reguladores negativos) e mecanismos autoimunes. Estes últimos, presentes em até cerca de 50% dos doentes com UCE, podem ser do tipo I (autoalergia) mediados por autoanticorpos IgE anti-autoantigénios (TPO, dsDNA, etc) ou sobretudo do tipo II, mediados por autoanticorpos IgG anti-recetor de alta afinidade da IgE (FcRI) e/ou dirigidos para a própria IgE. Adicionalmente, uma resposta imunológica inata ativada por agentes infeciosos (por exemplo o Helicobacter pylori), ou outros estímulos, poderá ter um efeito desgranulante do mastócito, particularmente em indivíduos suscetíveis geneticamente (com polimorfismos nos genes da resposta imuno-inflamatória). Agonistas não imunológicos podem também induzir libertação de mediadores pró-inflamatórios pelos mastócitos1-5.

A UCE, pela imprevisibilidade dos surtos e pelo compromisso da imagem corporal afeta de forma crónica o desempenho das atividades diárias. Alterações da quantidade e/ou qualidade do sono, doenças psiquiátricas como ansiedade e depressão, disfunção sexual, são as complicações mais frequentes, com custos diretos consideráveis pelo consumo de medicação, utilização recorrente dos serviços de saúde, e custos indiretos associados ao absentismo e menor desempenho escolar/profissional1-10.

Como é feito o diagnóstico da Urticária?

O diagnóstico de urticária é clínico, baseado nas características típicas das lesões cutâneas, descritas na resposta à pergunta 1. A história clínica detalhada e o exame objetivo cuidado são fundamentais para o diagnóstico de urticária1-4.

Relativamente ao tratamento, que opções terapêuticas existem para tratar a urticária?

O objetivo do tratamento da urticária é, independentemente da causa, alcançar o controlo total e rápido dos sintomas com recurso a fármacos eficazes e seguros, numa escalada terapêutica progressiva de acordo com as recomendações nacionais1 (Grupo Português de Estudos de Urticária-GPEU) e europeias2 (EAACI/GA²LEN/EDF/WAO).

Porque se diz que a urticária crónica é uma doença difícil de controlar?

A UC afeta cerca de 1% da população mundial de todas as idades, principalmente mulheres na 3ª-4ª década de vida e geralmente dura vários anos (> 1 ano em 25-75% dos doentes) e em média leva > 1 ano até um controlo eficaz ser implementado. Mais de 25% dos casos de UCE são resistentes à terapêutica de 1ª linha, mesmo em doses mais altas (4x/dia), e após terapêutica adicional com biológico 1/3 dos doentes ainda não fica controlado. Claro que esta evolução depende de múltiplos fatores associados (presença de angioedema, UCInd, hipersensibilidade a AINEs, etc) e do mecanismo fisiopatológico subjacente, evidenciados por diferentes biomarcadores e traduzindo a presença de diferentes fenótipos, genótipos, e provavelmente diferentes endótipos, que condicionam diferentes respostas terapêuticas. 1-4

A par da terapêutica instituída pelo médico imunoalergologista, que outros cuidados deve ter o doente com urticária, no dia-a-dia?

A identificação de condições relevantes que modificam a atividade da UCE e os fatores que exacerbam a UCE, como medicamentos, alimentos, stress e infeções, pode ajudar médicos e doentes a compreender e, às vezes, mudar o curso da UCE.

Os medicamentos podem desencadear a exacerbação da UCE, sendo os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) os fármacos mais comuns, podendo ser responsáveis pelo agravamento da UCE em até 25% dos doentes, com exceção do paracetamol e / ou os inibidores seletivos da COX-2 que são habitualmente opções mais seguras em doentes com UCE. Deste modo, na história clínica detalhada, deve ser sempre incluída a pesquisa de ingestão de AINEs, incluindo o seu uso em sos, e neste caso o médico deve aconselhar a evicção de certos AINEs para prevenir a exacerbação da UCE

Em alguns doentes, alguns alimentos, sobretudo os alimentos potentes libertadores de histamina e os pseudoalergénios (como os aditivos alimentares), podem desencadear exacerbação da UCE, e na história clínica deve ser incluída esta questão. Com base na resposta dos doentes, dietas com baixo teor de pseudoalergénios e histamina podem ser consideradas como uma medida diagnóstica individual adicional. No entanto, as dietas diagnósticas devem ser mantidas apenas por um tempo limitado para evitar efeitos colaterais e riscos nutricionais; geralmente são recomendadas no máximo três a quatro semanas e estão contra-indicadas dietas demasiado restritivas por longos períodos. É importante salientar que as dietas diagnósticas não devem atrasar o tratamento eficaz da UCE. Por outro lado, o stress pode exacerbar a CSU, e até um terço dos doentes com UCE refere o stress como um fator de agravamento de sua urticária. Nestes doentes, a redução do stress e medidas de controlo do stress podem ser úteis para um melhor controlo da CSU2.

É possível prevenir a urticária ou evitar crises?

Não é possível prevenir o aparecimento de urticária. No entanto, o diagnóstico correto e atempado por um médico especialista em urticária, e o tratamento adequado, incluindo a identificação e controlo de fatores de agravamento e de comorbilidades, permite minimizar o aparecimento de crises.

No âmbito do Dia Mundial da Urticária, que se assinalou a 1 de outubro, que mensagem gostaria de deixar?

A urticária é uma patologia frequente, mas complexa e que pode ter um significativo impacto na QoL dos doentes, familiares, amigos e sociedade em geral, com elevados custos para todos nós, pelo que o seu diagnóstico e tratamento adequados e atempados são fundamentais e a sua referenciação a centros excelência diferenciados pode ser necessária para minimizar todas as complicações associadas ao seu não controlo.

Referências: 

  1. Costa C, Gonçalo M, em nome do GPEU – Grupo Português de Estudos de Urticária. Diagnostic and Therapeutic Approach of Chronic Spontaneous Urticaria: Recommendations in Portugal. Acta Med Port 2016 Nov;29(11):763-781.
  2. Zuberbier T, Abdul Latiff AH, Abuzakouk M, Aquilina S, Asero R, Baker D, et al.The International EAACI/GA²LEN/EuroGuiDerm/APAAACI Guideline for the Definition, Classification, Diagnosis and Management of Urticaria. Allergy 2021 Sep 18. doi: 10.1111/all.15090.Online ahead of print.
  3. Costa C, Campina S, Andrade P, Filipe P, Guilherme A, Gonçalo M. Urticária Crónica - Do Diagnóstico ao Tratamento. Revista SPDV 2016; 74(4): 315-324.
  4. Costa C, Pinto PL, Apetato M, Andrade P, Guilherme A, Gouveia MP, Travassos AR, Gonçalo M. Doente com urticária crónica: diagnosticar e tratar melhor. Posgraduate Medicine 2016; 45 (1): 47-54.
  5. Bracken SJ, Abraham S, MacLeod AS. Autoimmune Theories of Chronic Spontaneous Urticaria. Front Immunol. 2019; 10: 627
  6. Carrasco J, Costa C, Gonçalo M, Guilherme M, Rodrigues Martins A. Qual é o impacto económico da Urticária Crónica Espontânea Grave em Portugal? A perspetiva do Serviço Nacional de Saúde e da Sociedade Portuguesa. Rev Port Imunoalergologia 2015; Vol.XXIII (Supl): 56 (PO29).
  7. Costa C, Rosmaninho I, Guilherme A, Ferreira J, Antunes J, Pina A, et al. Chronic Urticaria in the Real-Life clinical practice setting in Portugal: Baseline results from the non-intervencional multicare AWARE study. Acta Med Port 2019 Feb 28; 32(2):133-140.
  8. Maurer M, Houghton K, Costa C, Dabove F, Ensina LF, Giménez-Arnau A, et al. Differences in chronic spontaneous urticaria between Europe and Central/South America: results of the multi-center real world AWARE study. World Allergy Organ J 2018 Nov 16;11(1):32
  9. Maurer M, Costa C, Gimenez Arnau A, et al. Antihistamine-resistant chronic spontaneous urticaria remains undertreated: 2-year data from the AWARE study. Clin Exp Allergy 2020; 50:1166–1175.
  10. Costa C, Rosmaninho I, on behalf of the AWARE Portuguese Study Investigational Group. Chronic Urticaria in the Real-life Clinical Practice Setting in Portugal: Two-Year Results from the Non-Interventional Multicenter AWARE Study. Acta Med Port 2021; Jun 9. doi: 10.20344/amp.14477.Online ahead of print.
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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