LES afeta cerca de 0,1 % da população portuguesa

O que precisamos saber sobre o Lúpus

Atualizado: 
10/05/2023 - 11:14
Sabia que o cansaço acentuado, febre, dores musculares ou dor e inflamação articular estão entre as principais manifestações clínicas do Lúpus, mas que os sintomas podem ser muito variáveis e que cada doente apresentar uma evolução clínica diferente? No novo artigo, o Professor Miguel Bernardes, membro da Sociedade Portuguesa de Reumatologia, explica o que precisamos saber sobre a patologia.

O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma doença reumática inflamatória crónica que ocorre quando o sistema imune, através de uma desregulação imunológica a vários níveis (por exemplo, pela produção de autoanticorpos), reage contra os órgãos e tecidos do organismo humano, levando a um processo contínuo de inflamação com dano consequente. A causa desta patologia não é exatamente conhecida, contudo, até à data, sabe-se que resulta de uma combinação de fatores genéticos, ambientais e hormonais. O LES é mais prevalente no sexo feminino (razão 10:1), particularmente em mulheres em idade fértil ou reprodutiva. Segundo dados disponibilizados pela Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR) no grande estudo epidemiológico das doenças reumáticas em Portugal - EpiReumaPt, o LES afeta cerca de 0,1 % da população portuguesa.

As manifestações clínicas do LES são muito diversas e podem variar muito de doente para doente. Na maioria dos casos estão presentes alterações articulares e/ou cutâneas. Contudo, alguns doentes terão manifestações mais graves, como o envolvimento renal ou neuropsiquiátrico.

Os primeiros sinais podem surgir entre os 16 e os 49 anos, sendo que os mais comuns incluem: sintomas constitucionais, tais como cansaço acentuado, febre e dores musculares, habitualmente presentes em algum momento durante o curso da doença; manifestações articulares como dor e inflamação articular (artrite) com carácter simétrico; tipicamente (embora, nem sempre) alterações da pele, como rash ou eritema fotossensível da face em forma de asa de borboleta, ou outras lesões cutâneas em áreas fotossensíveis e expostas ao sol; úlceras (aftas) orais ou na mucosa nasal; aumento da queda difusa de cabelo; fenómeno de Raynaud (alteração da coloração das extremidades dos dedos das mãos ou dos pés com a exposição ao frio) ou, menos frequentemente, secura ocular ou oral.

Embora existam, fundamentalmente, dois tipos da mesma doença – o LES e o lúpus eritematoso cutâneo (que atinge exclusivamente a pele), no caso do primeiro tipo, vários órgãos e sistemas são afetados. Como tal, outras manifestações mais graves podem ocorrer: alterações hematológicas, incluindo anemia, diminuição dos glóbulos brancos (leucopenia) e plaquetas (trombocitopenia); doença pulmonar, sobretudo inflamação da pleura, mas também pneumonite, doença intersticial do pulmão, hipertensão pulmonar e hemorragia alveolar; trombose venosa ou arterial; envolvimento neuropsiquiátrico que leva a defeitos cognitivos, delírio, alterações psiquiátricas, convulsões, dor de cabeça ou neuropatias periféricas (que cursam com “formigueiros” nas extremidades dos membros).

Na ausência de tratamento, a doença evolui e gera complicações potencialmente fatais. Entre elas, destacam-se o envolvimento renal que se pode manifestar por hipertensão arterial ou edema dos membros inferiores (e que se não tratado adequadamente poderá evoluir para insuficiência renal crónica com necessidade de hemodiálise), a doença cardiovascular com inflamação do pericárdio (membrana que envolve o coração), do músculo cardíaco ou mesmo lesões das válvulas cardíacas e que podem levar à ocorrência de pericardite, miocardite ou insuficiência cardíaca grave. Igualmente, o risco de doença aterosclerótica está muito aumentado nos doentes com LES, podendo manifestar-se por enfarte do miocárdio ou AVC em idades mais jovens.

Não existe um único teste ou uma única forma de diagnóstico da doença, sendo um desafio para os reumatologistas diagnosticar o LES num determinado doente, já que as manifestações clínicas podem também estar presentes noutras doenças. Assim, o diagnóstico resulta de uma combinação da avaliação clínica criteriosa (com história clínica e exame físico completos), do estudo laboratorial (com análises clínicas específicas) e, quando necessário, de estudos radiológicos (como a radiografia, a tomografia computorizada (TC) ou o ecocardiograma). Sendo a produção de anticorpos uma característica que, quase sempre, está presente nestes doentes, a sua análise torna-se fundamental, quer na confirmação quer na exclusão do diagnóstico. Os anticorpos tidos em conta são: anticorpos antinucleares (ANA), presentes em quase todos os doentes (sendo muito sensíveis mas pouco específicos da doença), o anticorpo anti-DNA nativo (muito específicos da doença), entre outros, como o anticoagulante lúpico, os anti-fosfolipídeos, o anti-Sm, o anti-SSa ou o anti-SSb. A avaliação analítica dos níveis de complemento (que quando baixos indicam atividade da doença) e dos parâmetros inflamatórios (proteína C reactiva e velocidade de sedimentação) é também crucial na monitorização da atividade da doença.

Pode ocorrer um surto da doença em qualquer altura, seja espontaneamente ou secundária a fatores como stress (emocional ou físico – por exemplo, cirurgia, gravidez, parto), infeção (respiratória ou outra), exposição ao sol ou a determinados fármacos.

A fertilidade em doentes com LES não parece estar alterada pela doença em si; no entanto, em mulheres expostas a determinados tipos de tratamento (por exemplo, à ciclofosfamida) pode ocorrer uma diminuição da reserva ovárica.

Quanto à gravidez em mulheres com LES, não existe nenhuma contraindicação à gestação nestas doentes: a gravidez deve ser planeada e será bem-sucedida desde que a doença esteja controlada e haja um seguimento em consulta multidisciplinar específica. Contudo, esta acarreta riscos materno e fetal superiores quando comparados com os de uma gravidez em mulheres saudáveis (havendo fatores da doença que aumentam esse risco, como a positividade

para anticorpos anti-SSa, anti-SSb ou anti-fosfolipídeos). As complicações incluem pré-eclampsia, parto pré-termo, restrição do crescimento fetal intrauterino e, em situações mais graves, lúpus neonatal na criança ou, até mesmo, perda fetal. O prognóstico, tanto para a mãe como para o bebé, é melhor quando o LES está em fase quiescente, ou seja, inativo há pelo menos seis meses antes da conceção. Os surtos de doença durante a gravidez em mulheres com LES colocam desafios no que respeita à distinção entre as alterações fisiológicas relacionadas com a gravidez e as manifestações relacionadas com a doença. Deste modo, a atenção da doente e do médico deve ser redobrada. Tendo em conta todos estes aspetos, antes da conceção, a doença deve estar controlada e os fármacos envolvidos no tratamento do LES têm que ser revistos, já que alguns podem ser prejudiciais ao feto. Para isso, é necessária uma abordagem multidisciplinar com monitorização médica, obstétrica e neonatal rigorosa para otimizar os resultados maternos e fetais. As doentes com LES que pretendem engravidar devem ser submetidas a um controlo apertado e consultar o reumatologista e o obstetra.

O tratamento do LES depende da atividade da doença, isto é, da gravidade e do tipo de sintomas presentes num determinado momento. Os objetivos prendem-se, assim, com a indução da remissão, ou seja, o controlo rápido da atividade da doença, seguido de um tratamento de manutenção e, ao mesmo tempo, de prevenção de surtos de agudização. Existem vários fármacos utilizados para cada uma destas etapas do tratamento médico. De uma forma simples, os mais utilizados são: anti-inflamatórios não esteróides, especialmente nas manifestações articulares, musculares, cardíacas (miocardite e pericardite), pulmonares (pleurisia) e cefaleias; corticosteróides que devido às suas propriedades anti-inflamatórias constituem o pilar do tratamento de várias doenças sistémicas imunomediadas, podendo ser administrados por via tópica (lesões cutâneas), intra-articular (artrite), oral, intramuscular ou intravenosa; antipalúdicos de síntese (hidroxicloroquina - Plaquinol®), cuja utilização crónica está associada a menos complicações no curso da doença, à redução da mortalidade e à redução da incidência de exacerbações, sendo, atualmente, recomendados para todos os doentes com LES na ausência de contraindicações; imunossupressores clássicos (como a azatioprina, a ciclofosfamida, o micofenolato mofetil e o metotrexato), como alternativa à hidroxicloroquina; as imunoglobulinas humanas endovenosas; e, por último, medicamentos biotecnológicos (belimumab, rituximab e anifrolumab) produzidos com as novas técnicas de engenharia biomolecular para casos mais graves e refratários.

Existem medidas gerais que podem ajudar na prevenção de surtos e/ou agravamento da atividade da doença: evitar a exposição solar, usar protetor solar com elevado fator de proteção contra a radiação UV (> 50+) durante todo o ano, realizar exercício físico regular e, sobretudo, cessar com o consumo de tabaco. Dado o elevado risco cardiovascular, para além da evicção

completa do tabaco, o tratamento das comorbilidades (diabetes, hipertensão arterial, hipercolesterolemia) é fundamental para o controlo da doença.

Finalmente, os doentes com LES devem ser também responsáveis pela monitorização e controlo da sua doença. O contacto regular com o médico reumatologista assistente, o cumprimento das medidas por si aconselhadas e a atenção redobrada à ocorrência de novos sinais e sintomas são atitudes fundamentais para que o sucesso do tratamento seja atingido e a evolução da doença possa, porventura, ser desacelerada ou mesmo interrompida.

Autor: 
Professor Miguel Bernardes – Reumatologista
membro da Sociedade Portuguesa de Reumatologia
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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