Opinião

O impacto da pandemia Covid-19 na Pessoa

Atualizado: 
09/06/2020 - 10:09
Tecer considerações sobre o impacto desta pandemia na Pessoa é precipitado, pois não será uniforme nem previsível. Os estudos sobre esta questão são poucos e focados, predominantemente, sobre os profissionais de saúde chineses que lidaram com a situação na sua fase inicial, num contexto muito crítico, com um enorme desconhecimento de toda a sua complexidade e o futuro era apenas uma conjetura. (Lai J, Ma S, Wang Y et al. JAMA Netw Open 2020;3: e 203976.)

Estamos todos então perante uma agressão que foi inesperada, é global, não controlamos, não há remédio e que, altera profundamente a vida e as pessoas mais vulneráveis apresentam um risco acrescido. Nada melhor para confirmar a nossa impotência.

Significa que devemos começar a tentar compreender a dimensão humana destes tempos e, na minha função de psiquiatra que escuta as vivências íntimas, não posso deixar de registar que estamos perante uma situação onde a tão falada Resiliência se joga em todas as suas dimensões. Este conceito, já muito presente no diálogo clínico, não apresenta ainda uma plena conceptualização científica que integre os diferentes aspetos da psicopatologia: biológicos, psicológicos, sociais, culturais e antropológicos.

A formação da Resiliência no funcionamento da vida mental remonta a um tempo longínquo na cadeia evolutiva dos mamíferos e o seu caráter protetor tem constituído um papel vital no processo de seleção natural. É definida por 3 parâmetros: Plasticidade como capacidade de estar em permanente mudança para nos adaptarmos; Sociabilidade como competência para estarmos em relação biunívoca com a envolvente e a faculdade de poder atribuir um Significado a uma situação, em que recorremos aos conceitos culturais, espirituais e emocionais que transportamos. Tudo isto conta com um cérebro/corpo capaz de construir a vinculação, um sistema endócrino que produz substâncias que desencadeiam reações físicas adaptativas e este conjunto a funcionar com um sincronismo bio comportamental notável. Enquanto a Plasticidade e a Sociabilidade estão presentes desde o desenvolvimento animal, a faculdade de atribuição de um Significado a uma situação é exclusivamente humano.

Como consequência deste olhar agora focado sobre a vivência do trauma, a nossa atenção vai para a importância dos vínculos dentro e fora dos grupos sociais, uns a manter e outros a construir e valorizar o Significado que atribuímos às relações como o fator que vai estimular a capacidade para suportar ou mesmo conduzir-nos na vivência da situação traumática.

Dito isto, hoje é o momentum talvez irrepetível de junto da pessoa com ou sem diagnóstico de doença psiquiátrica reforçar a Resiliência pela construção e manutenção dos vínculos mas com Significado que certamente não vamos encontrar nas redes socias e com a Pessoa emocionalmente mais vulnerável, reconhecer e valorizar uma Resiliência que desconhecíamos e que nos surpreendeu pelas competências que foram reveladas.

Se há lição que esta pandemia nos pode deixar é que mais do que nunca o exercício da medicina é um ato de humildade: sabemos muito pouco, temos de continuar a aprender e a mudar.

Autor: 
Lurdes Santos - Psiquiatra e assessora clínica do Instituto das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus.
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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Irmãs Hospitaleiras