Opinião

O cancro do colo do útero pode ser evitado através da prevenção

Atualizado: 
22/01/2020 - 12:36
O cancro do colo do útero continua a ser um tumor relativamente frequente no nosso país, apesar de todos os progressos que temos tido. Para o atestar, basta verificar que, nos anos 80, tínhamos taxas de incidência à volta de 18/100 000 e que, atualmente, passámos para cerca de 10/100 000 na avaliação do Globocan-2018. Temos feito o mesmo percurso no que diz respeito à mortalidade, que baixou consideravelmente.
Dr Daniel Pereira da Silva

Estes dados demostram que temos feito um trajeto positivo. No entanto, se olharmos para a nossa posição no contexto dos 15 países mais desenvolvidos da União Europeia, verificamos que ainda não atingimos a média.

Estes resultados decorrem do facto de que um número elevado de mulheres não faz a prevenção adequada, pelas mais diversas razões: porque não valorizam o risco que correm; porque não têm o devido cuidado; porque julgam que isso só acontece às “outras”; porque andam distraídas; porque não têm tempo; porque não têm acesso fácil ao rastreio. Enfim... por inúmeras razões.

A verdade inquestionável é que o cancro do colo do útero atinge sobretudo mulheres com menos de 60 anos de idade e com menos recursos; mulheres que, pelas mais diversas razões, não cuidam da sua saúde. Contudo, este é um cancro totalmente evitável!

A história natural deste cancro é bem conhecida. O principal respon­sável é o vírus do papiloma humano de alto risco (HPV). Numa 1ª fase, o vírus infecta as células do colo do útero e, depois, perante deter­minadas condições, transforma-as progressivamente numa célula cancerosa. Na maior parte dos casos, esta evolução acontece sem qualquer sintoma, sem qualquer sinal. O vírus pode igualmente infetar e provocar lesões em todas as regiões de contacto sexual: vulva, vagina, cavidade oral e ânus. O homem também é alvo da infeção, mas tem menos carga de doença que a mulher.

As infecções pelo HPV são a doença sexualmente transmissível mais fre­quente na Europa. Em mulheres sexualmente activas, alguns estudos mostram uma prevalência de 70%, o que é muito elucidativo da facilidade com que se transmite. Não são necessários comportamentos considerados de risco para que uma mulher possa entrar em contacto com o vírus e adquirir a infecção. O vírus propaga-se com extrema facilidade através das relações sexuais, mas não é indispensável que haja penetração, basta um contacto da zona genital com o vírus. A infeção, por si só, não representa uma ameaça grave, na medida em que, na maior parte dos casos (95%), é debelada pelas defesas naturais do organismo, sem consequências. A dificuldade reside no facto de que não é possível distinguir, à partida, os 5% em que corre mal. Por isso, é fundamental a prevenção com a vacina e o rastreio.

Em Portugal, te­mos cerca de 2.850.000 mulheres que deviam fazer regularmente o rastreio. Destas, 20 a 30% faz exames todos os anos e às vezes mais do que uma vez por ano. As restantes nunca o fizeram ou fazem-no erraticamente, sem método e sem rigor! É sobretudo neste grupo que vamos encontrar a grande maioria dos casos que diagnosticamos todos os anos. Destas, cerca de 250 vão morrer, porque a doença é detectada numa fase tão avançada, que a cura não é possível!

No programa de rastreio da região centro, 90% das mulheres com cancro invasivo do colo não fazem rastreio há mais de 5 anos! São factos preocupantes que devem mobilizar homens e mulheres. As mulheres têm de fazer o rastreio com regularidade, os homens devem incentivar as suas companheiras ou amigas a fazerem o rastreio. O método de rastreio mudou: deixou de ser a citologia e passou a ser a pesquisa do vírus (HPV). Trata-se de um método mais sensível, o que permite dar muito mais garantia à mulher de que não tem doença quando o seu teste é negativo. Por essa razão, só é necessário repetir o teste de 5 em 5 anos! A realização do teste com essa periodicidade é um direito de todas as mulheres que residem no nosso país.

Um novo caminho foi aberto com a criação da vacina contra o HPV. Estão disponíveis duas vacinas. Ambas protegem contra o HPV 16 e 18, que são responsáveis por cerca de 70% dos casos de cancro do colo do útero, mas uma delas é nonavalente, ou seja, protege contra 9 tipos de HPV, o que alarga a proteção para mais de 90% dos cancros do colo do útero, mas também para tumores associados ao HPV em outras localizações. A vacina está incluída no plano nacional de vacinação para raparigas e rapazes, tornando-a de uso universal e gratuita para toda a população envolvida: jovens com 10-13 anos. É a altura ideal para se ser vacinado, mas as possibilidades não se esgotam nestas idades. Todas as mulheres devem ser vacinadas. Se não foram abrangidas pela proteção do estado, devem fazê-lo por sua iniciativa – a vacinação está indicada para todas as mulheres e há demonstração científica da sua validade em mulheres até aos 45 anos.

Uma pequena nota: - se não faz uma citologia há mais de 3 anos, se não foi vacinada, procure já o seu médico. Não queira correr riscos desnecessários!

Conto-vos uma pequena história real, com um nome fictício: a Maria voltou à minha consulta, agora com 32 anos. Já não vinha há 10 anos. O que a trouxe de volta foi o facto de ter feito o rastreio no médico de família, que apontou para a presença de uma lesão no colo do útero. Observei-a e confirmou-se a presença de uma lesão pré-cancerosa - do mal, o menos.

Revi a ficha clínica da Maria e verifiquei que a tinha aconselhado a ser vacinada na última consulta que lhe tinha feito 10 anos antes. Fiquei intrigado e perguntei-lhe se tinha seguido a minha recomendação. Ela hesitou e respondeu: “não fiz, Senhor Doutor; o custo era um problema para mim, por isso hesitei. Falei com o meu médico de família e ele desaconselhou-me por já ter tido relações.”

Infelizmente, o colega não estava bem informado e não aconselhou a Maria de forma adequada. Desdramatizei a situação de forma o mais isenta e rigorosa possível. Felizmente, a Maria fez o rastreio e foi possível detetar a lesão pré-cancerosa. Foi tratada e ficou bem, e, desta feita, aceitou fazer as 3 doses recomendadas da vacina. Mais vale tarde do que nunca!

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Autor: 
Dr. Daniel Pereira da Silva - Presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.