Entrevista

“Nos últimos anos, assistimos a uma evolução extraordinária no tratamento do cancro do pulmão”

Atualizado: 
15/04/2021 - 16:19
O cancro do pulmão continua a ser uma das principais causas de morte em todo o mundo. Associado sobretudo ao consumo do tabaco, em 2020, foram diagnosticados mais de 5.400 novos casos da doença em Portugal. As mortes chegaram às 4.797, nesse mesmo ano. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Ana Figueiredo, Assistente hospitalar graduada de pneumologia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), relembra que o pulmão “não dói”, pelo que a doença é, quase sempre, diagnosticada em fases avançadas. Mas se antes, a quimioterapia era a única arma terapêutica contra o cancro do pulmão, hoje, as terapêuticas dirigidas e a imunoterapia representam uma luz de esperança para muitos destes doentes.

Sabendo que o cancro do pulmão continua a ser umas das principais causas de morte a nível mundial, e para que possamos fazer o seu enquadramento na realidade no nosso país, começo por lhe perguntar qual a incidência do Cancro do Pulmão em Portugal? E qual a sua taxa de sobrevivência?

A nível mundial, o cancro do pulmão é o segundo cancro mais prevalente, logo a seguir ao cancro da mama, com 2 206 771 novos casos por ano, o que representa 11.4% do total de cancros (dados Globocan 2020). Além da elevada prevalência, o cancro do pulmão é ainda o que tem uma mortalidade mais elevada, em ambos os sexos. A nível nacional, os dados mais recentes indicam que, em 2020, foram diagnosticados 5.415 novos casos de cancro do pulmão, sendo a terceira neoplasia mais frequente, e aquela geradora de maior mortalidade, com 4.797óbitos (dados Globocan 2020).

A taxa de sobrevivência é dependente do estadio em que a doença é diagnosticada, pelo que é fundamental que se faça o diagnóstico o mais precocemente possível.

Quais os principais fatores de risco associados a esta doença? E quais as faixas etárias mais atingidas por esta neoplasia?

O tabaco é o principal fator de risco para o aparecimento de cancro do pulmão: oitenta e cinco a noventa por cento dos novos casos são detetados em fumadores. Se queremos diminuir o número de novos casos de cancro do pulmão, é fundamental prevenir o início do hábito nos mais jovens e ajudar os fumadores motivados a parar de fumar.

Existem outros fatores de risco associados a esta doença, como a contaminação ambiental, fatores genéticos ou alterações moleculares, mas numa percentagem muito pequena, quando comparados com o tabagismo.

É fundamental perceber que o tabagismo não provoca doenças de imediato. São necessárias várias décadas para que as alterações genéticas e inflamatórias causadas pelo uso continuado do tabaco se acumulem e provoquem doenças. Por isso, habitualmente, os tumores do pulmão dos fumadores são diagnosticados em média entre os sessenta e oitenta anos.

Mesmo sabendo que o cancro do pulmão pode apresentar sintomas apenas numa fase mais avançada da doença, a que sinais devemos estar atentos?

O cancro do pulmão pode crescer durante bastante tempo sem dar sintomas, porque o pulmão “não dói”. Só quando o seu tamanho é muito grande, invade um vaso, um brônquio ou uma estrutura próxima, ou tem já lesões noutros órgãos ou sistemas é que aparecem os sintomas.

Qualquer variação do nosso estado de saúde deve ser avaliada, particularmente se se prolongar no tempo. Os sintomas de alerta para o cancro do pulmão podem ser muito variáveis, relacionados com o próprio tumor e a sua localização no tórax (hemorragia pela boca de sangue vivo, dificuldade respiratória, pieira ou chiadeira no peito, rouquidão ou alteração da voz, dificuldade em engolir, edema da face e do pescoço,...), relacionados com localizações secundárias (dores de cabeça, desequilíbrio, dores ósseas,...), ou com efeitos gerais (falta de apetite, fadiga, emagrecimento). É também preciso estar atento, particularmente nos fumadores ou doentes com doenças respiratórias, a alterações de sintomas já existentes, como tosse do fumador que se torna mais forte e persistente.

Qualquer pessoa com estes sintomas deve consultar rapidamente o seu médico assistente.

Sabendo que existem vários tipos de cancro do pulmão, dividindo-se em dois grupos principais baseados no aspeto das células ao microscópio, que se comportam de forma diferente no que respeita à forma como se desenvolvem e metastizam, o que distingue o cancro de pulmão de pequenas células (CPPC) e o cancro do pulmão de não pequenas células (CPNPC)?

O cancro do pulmão de pequenas células é mais raro, com uma grande agressividade porque cresce muito depressa, invade os vasos e metastiza para outros órgãos rapidamente. É um tumor muito relacionado com o tabagismo.

O cancro do pulmão de não pequenas células é mais frequente (cerca de 85% dos casos) e tem um crescimento mais lento que o de pequenas células. Durante muito tempo foi tratado como uma entidade única, mas ao longo dos tempos fomo-nos apercebendo que existem dois subtipos com comportamento e tratamento diferentes. Por um lado, os tumores escamosos, ou epidermoides, mais centrais, e durante muito tempo os mais frequentes e associados com o tabagismo. Por outro lado, o grupo de tumores não escamosos, que engloba o adenocarcinoma e o carcinoma de grandes células. O adenocarcinoma é atualmente o mais frequente, e acredita-se que tal se relacione com alterações na composição dos cigarros, levando os fumadores a inalar mais profundamente e a manter apneia mais tempo. São, no entanto, também os mais frequentes no sexo feminino e também em não fumadores, podendo estar por vezes relacionados com mutações celulares que estarão na sua origem.

Destes, qual o mais frequente e o que apresenta melhor prognóstico?

O adenocarcinoma é o tumor maligno do pulmão mais frequente, representando 30 a 50% dos casos. É, por isso, não só o mais estudado, mas, uma vez que é o tumor que mais frequentemente apresenta mutações, também o que tem mais opções terapêuticas, e, por isso, melhor prognóstico.

Como é feito o seu diagnóstico? E quais os principais desafios associados?

Quando existe uma suspeita de cancro do pulmão, o primeiro exame habitualmente realizado é uma radiografia do tórax (RX), seguida de uma tomografia computadorizada (TC). Se for identificada uma lesão suspeita, é necessário confirmar o diagnóstico através da recolha de fragmentos da lesão (biópsia) ou de células tumorais (citologia). Este material pode ser obtido através de uma broncoscopia ou de uma biópsia trans-torácica. Por vezes, estes exames não conseguem obter amostras e fazer o diagnóstico, tendo que se avançar para outras técnicas, como a ecoendoscopia, a biópsia de metástases conhecidas ou mesmo a biópsia cirúrgica.

Depois de feito o diagnóstico, o maior desafio é determinar, de forma correta, o estadio ou extensão da doença, que vai ser determinante na escolha do tratamento mais adequado. O estadiamento baseia-se no sistema internacional TNM. O T caracteriza o tumor (tamanho, localização e invasão das estruturas vizinhas). O N caracteriza os gânglios linfáticos (nodes), que são a primeira defesa, tentando conter a doença e, por isso, aumentando de tamanho. São classificados de acordo com o número e localização dos gânglios. O M indica se existem ou não metástases, o seu número e localização. De acordo com o T, o N e o M vamos obter o estadio da doença, que pode ser I, II, III ou IV. Para se fazer o estadiamento, podem ser efetuados vários exames complementares, como tomografias computadorizadas (TC), ressonâncias magnéticas (RM), tomografia de emissão de positrões (PET), cintigrafias, entre outros.

Como se trata o cancro do pulmão, em particular o cancro do pulmão de não pequenas células?

A escolha do tratamento depende do tipo histológico (pequenas células, carcinoma escamoso, adenocarcinoma, carcinoma de grandes células), da expressão do PDL-1 (um marcador que nos ajuda a avaliar a resposta à imunoterapia), e, no caso do adenocarcinoma, da presença de mutações. O segundo fator é o estadio TNM, e, por fim, as condições do doente, como idade, emagrecimento, estado geral, doenças e condições associadas.

Uma equipa multidisciplinar, formada por pneumologistas, oncologistas, imagiologistas, patologistas, radioncologistas e cirurgiões), avalia todos estes fatores e decide qual o protocolo mais adequado para cada caso, que é depois proposto ao doente. Os tratamentos podem incluir cirurgia, radioterapia, quimioterapia, tratamentos alvo e imunoterapia, isolados ou em combinação.

Quais as grandes novidades no que diz respeito ao seu tratamento?

Nos últimos anos, assistimos a uma evolução extraordinária no tratamento do cancro do pulmão, particularmente do CPNPC em estadio IV. Passámos de uma época em que tínhamos como única arma terapêutica a quimioterapia para uma nova era, com a descoberta das mutações driver e as terapêuticas alvo dirigidas a estas mutações, com taxas de resposta e durações de resposta nunca antes vistas. Tratam-se de terapêuticas orais (em comprimidos), tomadas diariamente e mantidas por tempo indeterminado, enquanto controlarem a doença, desde que não tenham efeitos secundários graves (raros). São tratamentos habitualmente muito bem tolerados, podendo ser feitos mesmo em doentes mais debilitados.

São, no entanto, poucos os doentes que apresentam estas mutações, sendo as mais frequentes a mutação EGFR (10-15%) e a translocação ALK (3-7%). Para os restantes doentes, restava-nos a quimioterapia, e foi por isso, com grande entusiasmo, que vimos surgir um novo tratamento: a imunoterapia. O nosso sistema imunitário protege-nos de tudo o que é estranho, como as bactérias e os vírus, mas os tumores têm a capacidade de se esconder do sistema imunitário, crescendo sem controlo. A imunoterapia estimula e desbloqueia a resposta imune, constituindo uma terapêutica mais “fisiológica” do que as outras existentes para tratar esta doença. Os fármacos atualmente disponíveis são inibidores da via PD-1/PDL-1, uma via que frena a resposta imunitária. Estes fármacos foram utilizados, inicialmente, em segunda linha, depois da quimioterapia, mostrando ser francamente superiores a uma segunda linha de quimioterapia. Permitem uma sobrevivência superior, mantêm a resposta mesmo após suspensão do fármaco, têm uma baixa toxicidade com impacto na qualidade de vida dos doentes e são eficazes nos vários tipos de tumores pulmonares. Posteriormente, mostrou-se também a sua superioridade face à quimioterapia em primeira linha, em monoterapia, em tumores que expressavam um PDL-1 superior ou igual a 50%. E, mais recentemente, surgiu a evidência do benefício da sua utilização em combinação com a quimioterapia, em primeira linha. Primeiro nos adenocarcinomas, e agora também nos CPNPC escamosos, tumores que até há bem pouco tempo tinham menos escolhas terapêuticas, e, consequentemente, pior prognóstico.

Vivemos tempos de grande entusiasmo, com a descoberta de novas mutações driver e terapêuticas alvo dirigidas, com a crescente utilização da imunoterapia, passando também para estádios mais precoces, e a possibilidade de combinar as várias terapêuticas. Acreditamos que, num futuro próximo, poderemos não curar as neoplasias em estádios avançados, mas transformá-las em doenças crónicas com as quais os doentes consigam conviver, com boa qualidade de vida.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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