Reflexões Tragicómicas de Um Engenheiro Entre Sentidos

No Vácuo Não Há Som, Mas Também Não Há Silêncio

Atualizado: 
23/12/2024 - 09:51
Se há algo que me fascina enquanto engenheiro eletrotécnico e de computadores, especializado em controlo e robótica, é o conceito de sistemas em interação. Tudo na natureza – e até nas máquinas que criamos – depende de entradas, processamento e saídas. Por exemplo, um robô precisa de sensores para "ver", "ouvir" ou "sentir". Se faltar um desses elementos, toda a lógica de funcionamento pode ser comprometida.

Agora, imaginem um engenheiro com deficiência auditiva e visual. Parece o início de uma anedota, mas é a minha vida. E não, não há aqui robôs para compensar as falhas (ainda), apenas uso um implante coclear e uma prótese para conseguir ter a percepção do som, e uns óculos para corrigir a miopia, mas não cura as minhas deficiências, e continuo a ver com a falta de visão central no olho esquerdo (devido a um problema congénito). É uma existência repleta de adaptações curiosas, momentos tragicómicos e reflexões profundas – especialmente quando o "sistema" que é o nosso corpo decide fazer umas alterações de firmware. Ah, e para tornar tudo mais interessante, o síndrome de Charles-Bonnet junta-se à festa, criando sons e vozes que não existem. Uma maravilha, não acham?

 

Quando os sentidos são os sensores da vida

Enquanto engenheiro, aprendi que qualquer sistema eficiente depende da qualidade dos seus sensores. Quanto mais precisos, melhor o desempenho. E, ao longo dos anos, percebi que o nosso corpo é uma máquina engenhosa – mas também vulnerável. A audição é o microfone da nossa vida: capta os sons, interpreta frequências e até ajuda no equilíbrio. A visão é, claro, a câmara principal. O tato, o sensor de proximidade, e o olfato e o paladar são as nossas "entradas químicas". Mas o que acontece quando o sistema perde parte destes sensores? Bem, o engenheiro em mim aprendeu que há sempre alternativas. O ser humano é, afinal, o sistema adaptativo mais avançado que existe.

No entanto, a adaptação não é linear, nem fácil. Como pessoa com deficiência auditiva e visual, frequentemente sou desafiado a redefinir as minhas "especificações operacionais". Por exemplo, não ouvir certos sons ajuda-me a concentrar-me no que escrevo. Curiosamente, é um "upgrade" útil, mesmo que imposto. Mas há o lado bizarro: sons inexistentes – cortesia do meu cérebro hiperativo. Este "bug", conhecido como síndrome de Charles Bonnet, é como ter um assistente virtual que insiste em falar sem ser solicitado. Imaginem tentar resolver um problema complexo de robótica enquanto uma voz qualquer murmura coisas sem nexo. Divertido? Talvez para quem observa de fora. Para mim, é no mínimo surreal.

 

O silêncio é o novo ruído

Sabem aquela ideia de que o silêncio absoluto ajuda a pensar? Pois, não é bem assim para mim. O silêncio, no meu caso, é um espaço preenchido por ecos criados pela minha mente. Quando estou a trabalhar num projeto de controlo ou a programar algoritmos ou um PLC ou um sistema SCADA com HMI, frequentemente o "ruído branco" da minha condição torna-se o som ambiente. Por vezes, é algo melódico, como fragmentos de música que a minha mente inventa. Outras vezes, são vozes aleatórias, como se estivesse a ouvir um podcast gravado num universo paralelo.

Certa vez, enquanto trabalhava num projecto que consistia num sistema complexo de sensores e actuadores/motores, dei por mim a discutir mentalmente com uma voz que insistia em criticar as minhas escolhas de design. "Esse projecto está desatualizado", dizia a voz. Claro que sabia que era uma manifestação do Charles-Bonnet, mas, por instantes, considerei se o meu cérebro não estaria a tentar enviar-me uma crítica construtiva. Resultado? Troquei alguns elementos só para calar a "opinião" intrusa. Acreditem ou não, funcionou!

 

Quando a visão e a audição conspiram

Enquanto engenheiro, sempre admirei a simbiose entre os diferentes sensores em sistemas complexos, desde a minha vida académica. No corpo humano, essa interdependência é ainda mais evidente. A minha deficiência visual e auditiva forçou-me a encontrar novas formas de processar o mundo à minha volta. Sem falta de visão central num dos olhos, muitas vezes sou obrigado a confiar em outros sentidos – e, ironicamente, quando a audição também me falha, descubro um "recurso oculto": a imaginação.

É interessante como a mente compensa a falta de estímulos reais com algo fictício. No meu caso, não só ouço sons inexistentes, como também vislumbro cenários que, por vezes, não correspondem à realidade. Isso trouxe-me uma lição curiosa: os sentidos são importantes, mas o que realmente importa é como processamos as informações que chegam até nós – ou que criamos.

Olhando para a engenharia, vejo algo semelhante. Quando um robô perde um sensor, o sistema pode estimar as condições com base em dados anteriores. Nós, humanos, fazemos o mesmo: preenchemos lacunas com as nossas memórias. No entanto, essa capacidade também pode ser irritante. Como quando a minha mente decide criar uma versão auditiva de algo que preferia esquecer – como aquela vez em que fiquei com o jingle de um anúncio preso na cabeça por dias.

 

A tragicomédia da Otorrinolaringologia

Curiosamente, é a Otorrinolaringologia – a especialidade médica que estuda os ouvidos, nariz e garganta – que melhor encapsula a interligação dos sentidos. O que me leva a outra reflexão tragicómica: por que valorizamos tão pouco estas "entradas sensoriais"? Só reparamos na sua importância quando algo corre mal. Como engenheiro, sei que ignorar pequenos problemas num sistema é receita para o desastre. Como pessoa com deficiência, sei que negligenciar os sentidos é subestimar o que nos liga ao mundo.

Por exemplo, o nariz – frequentemente subvalorizado – é uma entrada vital para a respiração e para o olfato. Sem ele, o sabor dos alimentos seria insípido e a capacidade de detectar perigos, como um incêndio, seria severamente limitada. Já os ouvidos, além de captarem sons, são essenciais para o equilíbrio. Perder esses sentidos é como operar um robô sem GPS ou sensores tácteis: ficamos desorientados.

 

A moral da história

A vida sem visão plena ou audição completa não é fácil, mas também não é o "fim do sistema". É uma oportunidade para reprogramar a forma como vivemos e para refletir sobre o que realmente importa. Sim, o som não se propaga no vácuo, mas isso não torna a audição menos relevante. Tal como um robô precisa de todos os seus sensores para funcionar de forma ideal, nós, humanos, dependemos da integração dos nossos sentidos para viver plenamente.

Na engenharia, quando algo falha, procuramos soluções, como no meu caso, uso o implante coclear e a prótese auditiva,  e ainda os óculos para corrigir a miopia. Na vida, é igual. Transformei as minhas limitações em lições, e aprendi que até os ruídos do Charles-Bonnet podem ser inspiradores – ou, pelo menos, material para um artigo tragicómico. Afinal, se não rirmos das nossas circunstâncias, quem o fará?

E agora, permitam-me voltar ao silêncio (ou ao que resta dele), porque vou desligar os meus aparelhos auditivos para dormir ou tentar descansar. Talvez, lá no fundo, eu consiga ouvir o som de uma nova ideia a surgir – ou, quem sabe, de um robô a criticar o meu design.

Autor: 
António Ricardo Miranda - Engenheiro Electrotécnico e de Computadores de Controlo e Robótica e Pessoa com Deficiência Auditiva e Visual
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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