Entrevista | Dia Nacional da Pessoa com Esclerose Múltipla

A Incontinência Urinária na Esclerose Múltipla "está geralmente associada a Bexiga Hiperativa"

Atualizado: 
04/12/2024 - 12:26
A incontinência urinária é uma das principais complicações associadas à Esclerose Múltipla e também uma das que mais se evita falar. De acordo com o especialista em Urologia, Ricardo Pereira e Silva, esta "tem uma carga emocional e psicológica intrínseca que não deve nunca ser negligenciada", no entanto, admite que, mesmo os próprios médicos, muitas vezes, "não exploram o tema" tanto quanto deviam. Em entrevista ao Atlas da Saúde, o médico urologista explica tudo o que precisamos saber sobre esta condição sublinhando que a incontinência urinária, "incluindo no doente neurológico (com EM ou outra doença de base), tem tratamento".

Por muito que se fale em Esclerose Múltipla, ainda há muitas pessoas que não entendem a doença. Neste sentido, em que consiste, quais as principais manifestações clínicas e quais as suas causas? Pode-se falar em fatores de risco? 

A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crónica na qual o sistema imunitário do doente provoca a destruição da camada de mielina (daí o termo doença desmielinizante) que reveste as fibras do sistema nervoso central e que é essencial para a condução nervosa normal. Pode afetar o cérebro e a medula espinhal em graus e localizações muito variáveis, com manifestações clínicas distintas, existindo diferentes tipos de EM de acordo com a evolução clínica. O diagnóstico é efetuado mais frequentemente entre os 20 e os 40 anos de idade ainda que possa afetar pessoas de qualquer idade.

A doença parte de uma interação entre múltiplos fatores ambientais e genéticos que, no seu conjunto, despoletam uma cascata de eventos que leva ao processo de desmielinização.  Alguns fatores como infeção pelo Virus Epstein-Barr, défice de vitamina D, obesidade e tabagismo poderão contribuir para o desenvolvimento da doença.

Qual a sua incidência a nível europeu? E, relativamente a Portugal, quantas pessoas se estima que tenham a doença? 

Estima-se que cerca de 700000 pessoas na Europa e 8000 pessoas em Portugal tenham a doença.

Qual o prognóstico da Esclerose Múltipla e suas principais complicações?

O prognóstico é muito variável dependendo do tipo de EM - surto-remissão, primária progressiva ou secundaria progressiva. Apesar de ser uma das causas mais frequentes de incapacidade no adulto jovem, em parte pelas sequelas motoras ou alterações do equilíbrio e da marcha, existem igualmente algumas formas ditas benignas na qual a incapacidade após vários anos de doença é mínima ou inexistente.  Outros sintomas possíveis são, nomeadamente, incontinência urinária, disartria (perturbação da fala), disfunção sexual ou alterações a nível psicológico/psiquiátrico (nomeadamente depressão).

Sendo a Incontinência urinária uma das principais complicações da doença, de que forma esta condiciona a qualidade de vida do doente? 

Mesmo perante um cenário de incapacidade significativa gerada pelos sintomas já referidos, a incontinência urinária tem uma carga emocional e psicológica intrínseca que não deve nunca ser negligenciada. Um doente incontinente tem uma forte probabilidade de evitar o contacto pessoal, social, profissional ou sexual devido à sua condição, agravando ainda mais o impacto da doença em diversas valências da sua vida.

Quais as principais diferenças entre incontinência urinária e bexiga hiperativa? A que sinais devemos estar atentos? 

A bexiga hiperativa é uma síndrome clínica que consiste na ocorrência de episódios de urgência miccional (vontade súbita e inadiável de urinar) que podem ou não ser acompanhados de incontinência urinária (que é o sintoma que consiste na perda involuntária de urina). Nessa perspetiva, podemos falar de uma bexiga hiperativa seca ou molhada. Esta última tem geralmente um impacto maior na qualidade de vida, mas, mesmo quando não está associada a incontinência, a necessidade de ir com muita frequência (por vezes de meia em meia hora) ao WC, com consequente interrupção das atividades, necessidade de planeamento prévio e, frequentemente, de procura antecipada de casas-de-banho ao chegar a qualquer lugar, é geralmente disruptivo para a vida dos doentes. [julgo que os sinais a que se deve estar atentos ficam patentes já na resposta]

Quantos doentes com EM se estima que sofram de incontinência urinária? 

Ainda que em grau variável como já referido, até 80% dos doentes com EM podem ter disfunção do aparelho urinário, incluindo incontinência.

Qual ou quais os tratamentos indicados para a incontinência urinária? Quando os tratamentos de primeira linha “falham” que outra opção pode existir? 

A incontinência urinária associada à EM está geralmente associada a bexiga hiperativa, à qual o tratamento é dirigido. Nessa perspetiva, numa primeira instância é utilizada medicação em comprimidos (existindo duas classes de medicamentos disponíveis). Quando o tratamento inicial e ineficaz, a injeção de toxina botulínica na bexiga ou a implantação de um neuromodulador de raízes sagradas são igualmente tratamentos passíveis de ser utilizados.

Em que consiste a neuromodulação? Tem contraindicações, por exemplo? Quais os cuidados a ter após esta intervenção? 

A neuromodulação de raízes sagradas consiste na implantação de um elétrodo junto às raízes nervosas da cavidade pélvica que é ligado a um gerador de estímulos (semelhante a um pacemaker cardíaco). Desta forma, é possível administrar uma corrente elétrica contínua, de baixa intensidade e imperceptível, modulando e otimizando a condução nervosa a este nível. No contexto da EM não existem contraindicações formais, devendo naturalmente ser feita uma boa escolha dos eventuais candidatos previamente à implantação. A intervenção é realizada sob anestesia local (em dois tempos, um primeiro para a colocação do elétrodo e um segundo para o gerador de estímulos) – o procedimento em si é relativamente rápido e, após a implantação do gerador definitivo, o dispositivo fica alojado na nádega, não exigindo cuidados específicos. De notar que, desde há alguns meses, os elétrodos que implantamos já são compatíveis com a realização de ressonância magnética, o que constitui uma grande vantagem para os doentes com EM que podem necessitar de realizar estes exames periodicamente.

Que resultados se pretendem alcançar com a neuromodulação?

Atendendo a que os doentes com EM para além de bexiga hiperativa têm frequentemente também dificuldade no esvaziamento (nomeadamente micção difícil e esvaziamento incompleto da bexiga), a neuromodulação surge como uma possibilidade para o tratamento simultâneo de ambas as disfunções. O objetivo é reduzir o número de idas à casa-de-banho, redução da sensação de urgência e da incontinência urinária quando presente; por outro lado, permite a melhoria ou normalização do esvaziamento. Nos doentes que tenham incontinência anal é igualmente expectável que ocorra uma melhoria com a neuromodulação sagrada, ao contrário da terapêutica farmacológica e da injeção de toxina botulínica que atuam exclusivamente no aparelho urinário.

Por que motivo ainda há muita dificuldade em abordar a incontinência urinária?  

O estigma associado é ainda um grande obstáculo – existem problemas e doenças sobre os quais as pessoas não gostam de falar, por se sentirem envergonhadas ou diminuídas. Surpreendentemente, os próprios médicos nem sempre questionam o suficiente também. É por isso que batalhamos diariamente pela consciencialização da sociedade para estas questões que devem ser adequadamente diagnosticadas e tratadas.

Para terminar, que mensagem gostaria de deixar no âmbito deste tema? 

Uma mensagem final, sem dúvida, é que a incontinência urinária, incluindo no doente neurológico (com EM ou outra doença de base), tem tratamento. O primeiro passo é reconhecer o problema e procurar ajuda médica diferenciada nesta área. O doente neurológico, porque muitas vezes tem limitações de outra índole, pode cair no erro de relegar este sintoma para um segundo plano, tentando simplesmente aceitá-lo, mesmo que a incontinência fira a sua dignidade e condicione gravemente a sua vida. No entanto, o ganho de qualidade de vida decorrente do tratamento adequado é muito grande e vale a pena envidar todos os esforços nesse sentido.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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