Entrevista | Dr. Luís Cunha Miranda

A ideia de que as mulheres com Artrite Reumatoide “não podem ou não devem engravidar” é um mito

Atualizado: 
19/07/2022 - 15:45
De acordo com o mais recente estudo dedicado às Doenças Reumáticas – o EpiReuma – 53% da população portuguesa “tem pelo menos uma das mais de 200 doenças reumáticas existentes”. No caso da Artrite Reumatoide, apesar desta afetar tanto homens quanto mulheres, ela tem um impacto especial sobre o sexo feminino. Em entrevista ao Atlas da Saúde, o especialista do Instituto Português de Reumatologia, Luís Cunha Miranda, revela que “questões como a fertilidade, a gravidez e amamentação ou ainda a capacidade de cuidar dos filhos ou de manter o emprego são situações que penalizam mais as mulheres”. No entanto, adverte: “um dos maiores mitos que lutamos diariamente é que as mulheres com AR e outras doenças reumáticas não podem ou não devem ser mães”. É possível engravidar, não há riscos para a gestação ou amamentação, desde que exista “uma estratégia conjunta entre a doente e o seu Reumatologista que permita que esse objetivo possa ser conseguido”.

Estima-se que, em Portugal, mais de metade da população adulta sofra de doenças reumáticas. Qual a sua prevalência? E o que explica o crescente aumento do número de casos nos países desenvolvidos, sobretudo nas faixas etárias mais jovens? 

Em Portugal através de um estudo recente da Sociedade Portuguesa de Reumatologia o EpiReuma calculou-se que 53% da população tem pelo menos uma das mais de 200 doenças reumáticas. existentes A prevalência de algumas doenças tem vido a aumentar muito por causa da alteração dos hábitos alimentares, com a obesidade e com o sedentarismo. Já não é raro vermos em idades cada vez mais jovens a presença por exemplo da osteoartrose que muitas das vezes se associa ao envelhecimento.  Sem dúvida que a patologia mais prevalente são as dores da coluna, especialmente da coluna lombar.

Os dados disponíveis mostram também que a artrite reumatoide, por exemplo, atinge três vezes mais mulheres do que homens. Como se caracteriza esta doença e quais os principais sintomas?

A artrite reumatoide é uma doença reumática sistémica imunomediada. Tal significa que pode atingir outros órgão e sistemas para além do músculo-esquelético e que muitas das vezes encontramos uma alteração imunitária com a presença de anticorpos. O quadro caracteriza-se pela presença de dores articulares envolvendo preferencialmente mãos, punhos, pés, mas podendo atingir muitas articulações de forma simétrica e que predominam no final da noite e manhã a chamada dor de características inflamatórias. Associa-se edema (inchaço) das articulações envolvidas com a presença de calor e vermelhidão nas articulações. Temos igualmente a presença de rigidez matinal, ou seja, a sensação de prisão ou limitação das articulações de manhã que se prolonga mais do que 30 a 45 minutos com melhoria posterior das articulações. O quadro apesar de variável mantém-se cronicamente muita além das 6 semanas. Tal como afirmei outros órgão e sistemas podem em qualquer ponto da doença aparecer.

É importante nunca negligenciar dores articulares que perduram no tempo e que atingem uma ou várias articulações, especialmente se acompanhada de ritmo inflamatório (no final da noite e manhã) e com alterações articulares.

Quais as causas associadas?

Não são conhecidas as causas do aparecimento da Artrite Reumatoide, mas sabemos que fatores ambientais em que o tabaco tem o maior destaque, uma predisposição genética e há quem discuta o papel de algumas infeções crónicas.

Quais os tratamentos indicados para artrite reumatoide? Que inovações têm surgido nesta área?

Hoje em dia não só temos um maior conhecimento acerca de como tratar os doentes com AR mas igualmente um conjunto alargado de medicamentos muitos deles inovadores e recentes que deve ser inserido numa estratégia partilhada entre o doente e o Reumatologista que o segue. Há cerca de 20 anos com o aparecimento das terapêuticas biológicas ou biotecnológicas pudemos começar um plano cujo objetivo é a remissão (ausência de sintomas) ou a baixa atividade da doença. Múltiplas medicações biotecnológicas foram sendo lançadas com resultados cada vez mais promissores. Mais recentemente ficaram disponíveis uma nova classe de medicamentos chamados os inibidores da JAK Kinase que não sendo medicamentos biotecnológicos partilham com estes algumas das características e com resultados sobreponíveis e em alguns casos melhores. De referir que os inibidores das JAK Kinase são medicamentos orais ao contrário dos biotecnológicos que são injetáveis.

Que fatores podem condicionar o agravamento da doença?

Sem dúvida que uma das principais causas de gravidade da AR é sem dúvida o diagnóstico tardio e o não seguimento por parte da Reumatologia. É fundamental que o diagnóstico seja feito o mais rapidamente possível e que o doente tenha acesso á especialidade de Reumatologia.  O não cumprimento da estratégia terapêutica falhando medicações e um mau seguimento com análises e consultas irregulares podem não só determinar uma maior gravidade da doença, mas igualmente aumentar a possibilidade de efeitos adversos.

De um modo geral, quais as principais complicações associadas a esta patologia?

A incapacidade e a destruição articular com erosões são de forma mais imediata as principais complicações da AR. Mas o atingimento do pulmão, do coração, do olho entre outros atingimentos sistémicos são complicações que sendo mais raras podem complicar a artrite reumatoide ao longo da evolução da doença.

Qual o seu impacto na saúde feminina?

A doença pode impactar de forma semelhante ambos os sexos, contudo no caso da mulher questões como a fertilidade, a gravidez e amamentação ou ainda a capacidade de cuidar dos filhos ou de manter o emprego são situações que penalizam mais as mulheres. Sabemos que as mulheres com AR ficam desempregadas mais facilmente que os homens com a mesma doença.

A patologia pode afetar a fertilidade da mulher, por exemplo? Que mitos existem quanto a esta matéria?

Sabemos que sendo uma doença inflamatória crónica essa mesma inflamação tem um impacto na fertilidade diminuindo-a. Contudo um dos maiores mitos que lutamos diariamente é que as mulheres com AR e outras doenças reumáticas não podem ou não devem ser mães. Deve existir uma estratégia conjunta entre a doente com AR e o seu Reumatologista que permita que esse objetivo possa ser conseguido. Tal passará na escolha do timing para uma gravidez bem como que medicamentos devemos manter ou retirar para que se possa atingir tal objetivo.

No que diz respeito à gestação, ainda que durante a gravidez seja normal existir um período de remissão, caso exista um agravamento da condição, a medicação pode afetar negativamente a gravidez? Quais os cuidados a ter?

A gestação deve ser conseguida em período de remissão ou baixa atividade da doença sendo que alguns medicamentos podem ser mantidos durante a gravidez, incluindo alguns biotecnológicos, e mesmo aumentados em caso de agravamento da doença e outros como por exemplo um dos medicamentos mais utilizados, o metotrexato, deve ser retirado alguns meses antes de se pensar numa potencial gravidez pois tem a capacidade de induzir malformações no feto.

Assim é fundamental uma estreita relação médico doente e uma estratégia que minimize o risco de complicações durante todo o processo de gestação.

É possível amamentar sem riscos?

Existe a possibilidade de amamentar, mas tal depende da escolha dos medicamentos que não passam para o leite materno e tal deve ser discutido entre o reumatologista e a doente com AR.

Para terminar, que mensagem gostaria de deixar a todas a mulheres que sofrem de AR?

A mensagem só pode ser de esperança. Hoje em dia a AR, salvo raras exceções, é uma doença que podemos controlar e cujo objetivo tem de ser a remissão e com isso a ausência de sintomas ou a baixa atividade. Temos estratégias de seguimento e de tratamento que nos colocam, ao reumatologista e aos doentes com AR, uma responsabilidade acrescida de devolver ao doente uma vida muito próxima do normal quer em termos físicos e mentais, mas igualmente de expectativas de vida para si e para a sua família. Precisamos claramente de mais e melhor acessibilidade à consulta de Reumatologia e com isso talvez possamos mudar a vida daqueles que ainda vivem em dor e em incapacidade. Ás mulheres com AR devemos por um lado realçar a sua capacidade de luta diária, mas igualmente a esperança que a doença não as deva definir enquanto pessoas, mas sim os seus sonhos e sucessos.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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