Entrevista | Dr. José Cunha

A fertilidade masculina está em declínio?

Atualizado: 
26/08/2022 - 12:42
Ao longo das últimas décadas vários estudos têm demonstrado que os homens produzem menos espermatozoides do que no passado, e os espermatozoides são menos saudáveis. Para percebermos o que pode estar a afetar a fertilidade masculina, o Atlas da Saúde esteve à conversa com José Cunha, diretor clínico da AVA Clinic Lisboa, que destaca a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a adoção de estilos de vida saudáveis como medidas importantes para “prevenir e combater o declínio da fertilidade masculina”.

Estima-se que cerca de 15% dos casais em idade reprodutiva, em Portugal, são inférteis e apesar de, em quase metade dos casos, não ser possível atribuir uma causa, estima-se que em 20% se deve a um problema no masculino. No entanto, continuamos a olhar para a mulher como a raiz do problema. Por que motivo, ainda falamos pouco sobre a infertilidade masculina?

Estima-se que atualmente o fator masculino possa ser responsável não por 20%, mas por quase 30 % do número total de casos de infertilidade. Uma percentagem sobreponível ao fator feminino, sendo que noutros 30% dos casos as causas são mistas (ambos os elementos do casal são “responsáveis”) e nos restantes 10 % das situações de infertilidade as causas permanecem inexplicadas.

Penso que o principal motivo está relacionado com um certo machismo existente na nossa sociedade que faz com que exista um mito no imaginário coletivo que a infertilidade do casal está associada sobretudo à mulher. Outro elemento muito importante é uma enorme falta de informação sobre este assunto aliada ao facto de o homem ter mais dificuldade, que a mulher, em lidar, aceitar e compartilhar este problema.

Como se caracteriza, quais as causas associadas e como se diagnostica a infertilidade nos homens?

A infertilidade masculina caracteriza-se pela incapacidade do homem em produzir espermatozoides em quantidade e/ou qualidade suficiente de modo a que consigam fecundar o óvulo e resultar em gravidez ou no caso de haver fecundação o embrião resultante não consiga dar origem a uma gravidez evolutiva.

As causas são várias e podem ser divididas em 4 grupos:

  1. Anomalias no esperma consequentes a alterações na produção de espermatozoides provocada por:
  • Varicocelo
  • Estilo de vida: obesidade, tabagismo, consumo de álcool/anabolizantes/drogas, contacto com substâncias químicas/tóxicas e sobreaquecimento dos testículos (determinadas profissões /vestuário).
  • Infeções / inflamações urológicas (epididimites e prostatites
  • Criptorquidia e cancro testicular
  • Traumatismo e torção testicular
  • Causas cromossómicas/genéticas (Sind. Klinefelter, microdeleções braço longo Y)
  • Alterações hormonais (hipogonadismo hipogonadotrófico)
  1. Problemas de obstrução no sistema de ductos que transportam o sémen, sendo a produção de espermatozoides normal:
  • infeções no epidídimo, vesiculas seminais e próstata
  • lesões iatrogénicas (cirurgias na uretra, próstata ou bexiga) e vasectomia
  • obstruções congénitas (epidídimo, por quistos na região dos ductos ejaculadores)
  • agenesia bilateral congénita dos canais deferentes (fibrose quística)

      3. Problemas psicossexuais, de ereção, de ejaculação e alterações do trato genital que impossibilitam o depósito do esperma no fundo da vagina durante o coito

      4. Inexplicada/ idiopática que no homem atinge valores entre os 25%-30% dos casos.

O principal exame que é realizado para diagnosticar e avaliar a infertilidade masculina é o espermograma. Este exame deve ser sempre realizado quando um casal é incapaz de obter uma gravidez ou de levar uma gestação ao seu termo, depois de pelo menos um ano de relações sexuais regulares sem usar qualquer método contracetivo.

Existindo anomalias nos parâmetros do espermograma (concentração de espermatozoides < de 15 milhões/ml, percentagem de móveis progressivos < de 32% e percentagem de formas normais < de 4%), o homem deve ser orientado para uma consulta de Urologia/ Andrologia, onde para além dum exame físico completo serão pedidos outos exames complementares de diagnóstico como análises hormonais, ecografia do aparelho reprodutor masculino, entre outros, exames que podem permitir uma avaliação mais completa da causa do problema.

Um estudo da Universidade da Virgínia, relativamente recente, veio demonstrar que a fertilidade masculina tem vindo a decrescer nas últimas décadas. Que fatores podem estar a contribuir para este declínio?

Na realidade, nos últimos anos tem sido publicada uma quantidade significativa de literatura sobre a diminuição, nas últimas 3-4 décadas, da qualidade do esperma e da sua relação com:

  • Efeitos de poluentes ambientais designados desreguladores/moduladores endócrinos
  • Taxas crescentes de criptorquidia (testículo fora da bolsa escrotal) e de tumores do testículo
  • Aumento da incidência de infeções do aparelho genital masculino.
  • Estilo de vida: obesidade, tabagismo, consumo de álcool/anabolizantes/drogas

De acordo com a Agência de proteção do Ambiente "Environmental Protection Agency" (EPA), um desregulador endócrino (“endocrine disrupting”) é definido como um "… agente exógeno que interfere com síntese, secreção, transporte, ligação, ação ou eliminação de uma hormona natural no corpo que são responsáveis pela manutenção, reprodução, desenvolvimento e/ou comportamento dos organismos …". Estas substâncias que podem ser naturais ou sintéticas e são usadas ou produzidas para uma infinidade de finalidades, podem ser agrupadas em duas classes:

  1. Substâncias sintéticas - utilizadas na agricultura e seus subprodutos, como pesticidas, herbicidas, fungicidas; utilizadas nas indústrias e seus subprodutos, como dioxinas, alquilfenóis e seus subprodutos como HAP, bisfenol A, metais pesados, entre outros; e ainda compostos farmacêuticos, como os estrogênios sintéticos DES e 17α-etinilestradiol.
  2. Substâncias naturais - fitoestrogénios, tais como, genisteína e metaresinol e estrogénios naturais como o 17β-estradiol, a estrona e o estriol. Resíduos de vários pesticidas têm sido encontrados em alimentos, água potável e corpos hídricos. Os pesticidas foram largamente utilizados no mundo por várias décadas, sendo o maior grupo de substâncias classificadas como desreguladores endócrinos. Na classe dos pesticidas, estão incluídos inseticidas, herbicidas e fungicidas, que são utilizados na agricultura, na aquacultura e no uso domiciliar. Por outro lado, a dieta dos países ocidentais é rica em gorduras animais, proteínas e hidratos de carbono refinados e leva a um aumento nas concentrações de estrogénio endógeno, o que pode afetar o desenvolvimento do feto do sexo masculino. Agricultores que praticam agricultura biológica têm nas suas amostras de esperma concentrações de espermatozoides significativamente mais altas do que agricultores que contactam com pesticidas e do que homens de outras profissões, como aqueles que trabalham com tintas, produtos químicos, eletricistas e metalúrgicos.

Estas constatações científicas dão claramente suporte aos possíveis efeitos das toxinas ambientais na espermatogênese.

Na prática, quais as consequências associadas a um número de espermatozoides inferior, menos saudável e com mobilidade cada vez mais reduzida? Na presença deste problema, o que pode ser feito para obter uma gravidez tão desejada? Quais os tratamentos disponíveis e quais as taxas de sucesso?

Na prática as consequências, dependendo da gravidade das alterações na concentração, motilidade e morfologia dos espermatozoides, são o casal demorar mais de um ano para obter uma gravidez (no caso duma mulher saudável e com idade ≤35 anos) ou mesmo nunca a conseguir obter, a não ser com a ajuda da Medicina da Reprodução.

Os tratamentos na área da Procriação Medicamente Assistida (PMA) disponíveis para ajudar a resolver este problema vão depender da gravidade das alterações nos parâmetros do espermograma (concentração, motilidade e morfologia dos espermatozoides) mas também da idade da mulher e da duração da infertilidade. No caso de uma alteração ligeira dos parâmetros e dependendo da idade da mulher pode ser ponderada a utilização da inseminação intrauterina (IIU). Se houver uma   alteração moderada desses parâmetros a fertilização in vitro (FIV) pode ser o tratamento indicado e nos casos em que existam alterações graves ou muito graves no espermograma a eventual solução é a realização da injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI).

As taxas de sucesso dependem do tipo de tratamento e da idade da mulher:

Que medidas podem/devem ser tomadas para “combater” este declínio na fertilidade masculina?

 As principais medidas para combater o declínio da fertilidade masculina são:

  • Prevenir as doenças sexualmente transmissíveis com ênfase na utilização na contraceção com métodos de barreira
  • Ter, desde jovem, um estilo de vida e uma alimentação saudáveis, combatendo o sedentarismo e a obesidade, evitando o consumo de tabaco, álcool, drogas e a exposição a substâncias poluentes/tóxicas e a radiações.
  • Diagnóstico e tratamento precoce do varicocelo
  • Prevenção e diagnóstico precoce do cancro
  • Redução da produção poluentes estrogénicos ambientais (“desreguladores endócrinos”)
  • Proteção eficaz dos trabalhadores das indústrias químicas e poluentes
  • Atenção aos testículos que não desceram para as bolsas – orquidopexia precoce
  • Criopreservação de esperma (antes da quimioterapia/ radioterapia)
  • Não adiar a paternidade para depois dos 50 anos.

A partir de que momento deve ser considerada a consulta na especialidade?

Sempre que um casal é considerado infértil temos que ter a noção que em cerca de 30 % dos casos a causa dessa infertilidade vai ser o fator masculino e segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS): “A infertilidade é uma doença do sistema reprodutivo, que se traduz na incapacidade de um casal conseguir uma gravidez ou de levar uma gestação ao seu termo, depois de pelo menos 1 ano de relações sexuais regulares sem usar qualquer método contracetivo”

Assim todo o elemento masculino dum casal nesta situação deve efetuar um espermograma e realizar conjuntamente com a sua parceira uma consulta de Infertilidade.

Também, qualquer homem independentemente da sua história reprodutiva se apresentar um espermograma com alterações associado, ou não, a antecedentes de infeções urológicas ou de doenças sexualmente transmitidas, a varicocelo ou que no exame físico apresente alterações no volume testicular, massa ou tumefação nos testículos, ausência de testículos nas bolsas, alterações na fisiologia masculina deve recorrer a uma consulta de especialidade (Urologia-Andrologia).

Que ideias-chave devemos reter quanto a este tema?

Nunca esquecer que 30 % das causas de infertilidade se devem ao fator masculino e que nos tempos atuais o peso da responsabilidade do homem na infertilidade é praticamente igual ao da mulher.

No estudo da infertilidade dum casal é indispensável a realização dum espermograma por parte do homem, assim como, a sua total colaboração na realização de outros exames que forem necessários.

As duas medidas mais importantes para prevenir e combater o declínio da fertilidade masculina, no meu entender, são:

  1. A prevenção das doenças sexualmente transmissíveis.
  2. Ter, desde a idade jovem, um estilo de vida e uma alimentação saudáveis, combatendo o sedentarismo e a obesidade, evitando o consumo de tabaco, álcool, drogas e a exposição a substâncias poluentes/tóxicas e a radiações.

 

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.