Saúde Mental

Explicar o suicídio aos pais

Atualizado: 
14/09/2020 - 12:41
Os pensamentos de suicídio podem afetar qualquer pessoa, de qualquer idade ou género e em qualquer momento. Com este artigo, a psicóloga clínica, Marta Calado, chamar a atenção para uma realidade que atinge crianças e adolescentes, levando os pais a compreender o que pode levar um jovem a cometer o suicídio, e como podem ajudá-lo.

«Ninguém me compreende. Já não vale a pena o esforço de tentar conversar. Nunca irão entender. Os meus pais soltam logo as suas críticas e julgamentos e exemplos de como era “No meu tempo”. E é nesse preciso momento que eu aciono a ligação wifi oculta e reservada dentro da minha cabeça e desligo o bluetooth do mundo externo. Como faço nas aulas e nos intervalos.»

«Quem me dera nunca ter nascido. Sou estranho. Ninguém gosta de mim assim como eu sou. Eu sei que não. Não sou como as outras pessoas da minha idade e eu sei que os outros notam isso, já para não falar quando fazem questão de atirar isso à cara. Um dia quando eu já não estiver aqui, vão-se arrepender. Estão sempre a olhar para mim e a pensar coisas acerca de mim. Sei bem que falam de mim nas costas e se riem.»

«Na verdade, nem eu gosto de mim, de ser eu, de viver neste meu corpo esquisito, viver com estes meus pensamentos na cabeça e este aperto no peito. Estar em permanente sobressalto, inseguro e com dúvidas infinitas acerca de um universo de assuntos. Não consigo mais suportar viver assim. Não há nada a fazer.»

«Tenho pensado cada vez mais: o que é que ando aqui a fazer? Qual o sentido de acordar de manhã e continuar a fazer sempre as mesmas coisas só porque sim…?»

«É tudo tão difícil. Vestir. Caminhar. Os olhares dos outros. Falar com eles. Ter de responder. Escutar. Comer. Fingir. Viver. Seria um alívio para todos se eu não existisse. Adormecer e não acordar, continuar tudo escuro.»

«Sinto um vazio enorme dentro de mim e só queria que isto tudo acabasse.»

Estas são as confissões dos jovens que chegam ao consultório em crise de angústia. A tentativa de suicídio é o ato de desespero para obter a libertação emocional dessa angústia. Porque afinal, esta é a interrogação que mais inquieta os pais e impressiona os demais: o que é que se passa no mundo psicológico de um jovem que pensa em se matar? Como é que foi capaz? Parece existir uma quase condenável contradição entre aqueles que são considerados os anos gloriosos da flor da idade e o sorumbático e taciturno que carateriza os anos de vida mais pesados.

O dia 10 de setembro foi instituído pela Organização Mundial de Saúde como o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio por se tratar de um sério problema de saúde pública. Todos os anos, o suicídio está entre as 20 principais causas de morte no mundo. É responsável por mais de 800.000 mortes, o que equivale a um suicídio a cada 40 segundos. Trata-se de uma causa de morte sobre a qual todos podemos fazer a diferença, particularmente quando falamos dos jovens. O suicídio é raro em crianças antes da puberdade e é um problema que ocorre geralmente na adolescência, sobretudo entre os 15 e os 19 anos de idade. Contudo, crianças pré-adolescentes cometem suicídio e esse problema potencial não deve ser ignorado.

Os pensamentos de suicídio podem afetar qualquer pessoa, de qualquer idade ou género e em qualquer momento. Começa com uma dor silenciosa que culmina num estado de angústia, conduzindo o jovem à crença de que viver é um peso insuportável e essa condição passa a comandar a sua mente. A única forma de silenciar essa dor extrema é acabar com a própria vida.

A investigação indica que o número de jovens que tenta o suicídio é muito maior do que aqueles que realmente o concretizam. O suicídio pode ser classificado como consumado, quando o comportamento leva à morte, tentado, quando o jovem age nesse sentido, mas não obtém a finalidade que pretendia, ou em ideação ou comportamentos auto-lesivos, quando o jovem está numa condição de premeditação. Os comportamentos suicidários e outras formas de comportamentos de risco, constituem adversidades reiais e dolorosas do percurso de vida de muitas crianças e jovens.

Quando um jovem tem ideias de suicídio sente desesperança e inutilidade há algum tempo e pode não saber o que provocou estas ideias, inclusivamente as pessoas mais próximas a si. Na verdade, habitualmente trata-se de uma combinação de fatores e pode não haver uma causa evidente. Os fatores de risco devem ser do conhecimento dos educadores para agir preventivamente e relacionam-se com razões genéticas, relacionadas com a história familiar ou pessoal. Existem jovens que têm uma predisposição depressiva ou uma maior vulnerabilidade emocional perante as adversidades. A perda de um ente querido, as mudanças e separações, imitação de suicídio de celebridades ou pares, o bullying, o cyberbullying, o insucesso, zangas e agressividade, o peso e a imagem, a negligência familiar, a doença incapacitante, o abuso físico, são apontadas como causas que tornam as experiências de vida extremamente intensas e incapacitantes. Crianças ou adolescentes em perturbação mental têm sentimentos de desesperança e desamparo que limitam a sua capacidade de considerar soluções alternativas para problemas imediatos. Adolescentes, sobretudo aqueles com um transtorno comportamental disruptivo, como um transtorno de conduta, podem agir sem pensar.

Quando um adolescente sente que tem espaço e tempo para desabafar, tem oportunidade para se descentrar do bloqueio mental onde residem as suas dificuldades e recentrar-se noutras alternativas e caminhos de resposta. Os jovens devem ser educados no sentido de adquirirem competências de gestão dos fatores de stress, gerir a frustração, as falhas e os erros, os abandonos e as rejeições, a tristeza, a culpa, a tensão emocional. Nesse sentido, existem fatores protetores que estruturam uma saúde mental mais resiliente, como uma família nuclear sólida, ter liberdade de expressão e oportunidade de comunicação, pertencer a grupos sociais, ter um percurso cultural, desportivo, académico valorizado, ter convicções religiosas, entre outros.

Uma intervenção precoce na prevenção do suicídio abrange toda a comunidade: pais, professores, treinadores, amigos, devem conhecer os sinais de alarme, logo à partida desmistificar o tema, saber reconhecer certas evidências, saber a quem recorrer, e saber mesmo como ajudar alguém que mostra sinais de mágoa, angústia, solidão e desespero. É importante não fazer juízos de valor, não manifestar preconceitos, não pressionar, ser empático e não crítico, valorizar o sofrimento e respeitar a dor, e sobretudo, saber escutar. Mantenha o contacto visual, utilize a linguagem corporal movimentando-se para perto do jovem ou segure a sua mão, faça perguntas diretas, ofereça confiança, explique que uma decisão permanente para um problema temporário não é a solução, e que as coisas irão melhorar. Se necessário, contacte o 112, por isso, não prometa confidencialidade porque poderá ter necessidade de falar com amigos, familiares ou técnicos de saúde.

Nesse sentido, a forma mais viável de prevenir o suicídio é ser um agente facilitador do apoio e da mudança positiva, conhecendo bem os sinais de alerta: falar em querer morrer, falar em sentir-se desesperado, falar em sentir-se preso ou com dores insuportáveis, falar em ser um incómodo e um problema para os outros, aumentar o consumo de álcool ou drogas, agir de forma agitada ou demonstrando ansiedade, comportar-se de forma imprudente, isolar-se constantemente, mostrar raiva e/ou ter mudanças de humor extremas. Leve a sério conversas e ameaças de suicídio. É indispensável que as pessoas que fazem parte da vida diária do jovem permaneçam atentas para comportamentos de risco, mudanças repentinas de atitude, de rotinas ou mudanças no estado psicológico da criança e do adolescente.  

Apesar de a adolescência ser caracterizada por ações impulsivas e irrefletidas já que ainda não se possui uma identidade coesa e consistente, uma larga maioria dos jovens com ideias ou gestos suicidários tem dúvidas quanto à decisão de terminar a sua vida e, de alguma forma, anseia por ajuda para poder escolher não morrer. Existem linhas gratuitas e anónimas de apoio telefónico que confirmam as boas medidas existentes no âmbito do apoio psicológico, caso da SOS Voz Amiga, no sentido de atenuar significativamente os sentimentos de isolamento e angústia, e reduzir o risco imediato de tentativa de suicídio. Por vezes, existe vergonha em conversar deste tema e esta partilha não presencial alivia essa pressão. Procurar ajuda para a resolução dos problemas, de forma célere, é o melhor conselho, para pais e para filhos. Quem já tentou o suicídio corre o risco de o voltar a tentar, pelo que é importante o tratamento de feridas antigas, com a ajuda de profissionais especializados, antes que a crise se agudize ou até que haja mais uma tentativa real de suicídio. A dor da morte pode ser vencida e ultrapassada, sendo a psicoterapia clínica e o tratamento psicológico uma ferramenta essencial na dissociação emocional de quem sofre e, sobretudo, de quem está numa condição de risco de vida.

Porque a minha missão é salvar vidas, este é o meu contributo, na data que hoje se assinala.

Autor: 
Marta Calado - Diretora Clínica da Clínica da Mente Crianças & Adolescentes
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.