Opinião

Esquizofrenia sob controlo

Atualizado: 
20/08/2021 - 11:38
A Esquizofrenia é provavelmente a doença mais paradigmática dentro do campo de acção da especialidade médica de psiquiatria. Há um longo percurso histórico na definição e conhecimento desta doença, que se prende com a complexidade sintomatológica da mesma, diferentes formas de eclosão e evolução, e variedade de manifestações pessoais.

Vale a pena nomear alguns nomes determinantes na evolução do conceito actual de esquizofrenia, começando por Emil Kraepelin (1856-1926), conhecido como o pai da psiquiatria moderna, que, valorizando uma constelação de sintomas definida, a par do curso crónico e debilitante da doença, define a “Demência Precoce”, valorizando assim o aspecto de deterioração mental global que surgia precocemente nestes doentes, e considerando que factores genéticos e biológicos eram fundamentais na génese da doença.

Poucos anos depois, Eugene Bleuler (1857-1939) traz outra abordagem da doença. Influenciado pela teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939), valoriza as dinâmicas psicológicas na base da doença, sem deixar de considerar a existência de alterações neurobiológicas. É ele que pela primeira vez utiliza o termo “esquizofrenia”, resultante da união de duas palavras do grego “schizo” (fragmentar, dividir), e “phrene” (mente), procurando realçar a desagregação global do psiquismo como elemento essencial da doença. Nesta perspectiva, destaca como sintomas nucleares da doença o autismo (isolamento social, grave perturbação da comunicação), défices na associação mental (rotura na ligação entre diferentes aspectos da actividade mental), alterações dos afectos (incapacidade em sentir emoções e afectos), e ambivalência (estado mental marcado por afectos ou ideias opostas que coexistem ao mesmo tempo, com a mesma importância, em relação a uma mesma situação ou pessoa).

Referimos ainda Kurt Schneider (1887-1967), numa abordagem que valoriza sobretudo a clínica, preocupado em identificar sintomas que por si só definissem a esquizofrenia, estabeleceu uma hierarquia de sintomas, de acordo com sua importância para o diagnóstico da doença.

Considera assim sintomas de 1ª Ordem, que sugerem fortemente a presença de doença, não sendo, no entanto, obrigatórios para fazer o diagnóstico, e que são:

  • Vivências de influência e de intervenção alheia ao próprio, ao nível da corporalidade, da vontade, do pensamento ou da afectividade;
  • Sonoridade do pensamento e sintomas associados, como eco, difusão, ou roubo do pensamento;
  • Percepções delirantes e audição de vozes na 2ª e, ou, na 3ª pessoa.

E sintomas de 2ª Ordem, sem a mesma força diagnóstica dos primeiros:

  • Intuições e ocorrências delirantes;
  • Outros distúrbios sensoperceptivos;
  • Perplexidade;
  • Alterações do humor, pobreza afectiva.

Estas abordagens da doença, algumas entre as muitas que poderíamos citar, foram fundamentais na estruturação dos actuais ideias sobre esquizofrenia, e mostram-nos a complexidade do conceito.

Estamos cientes de que a tentativa de conseguir transmitir eficazmente para o público em geral estas noções é um exercício habitualmente votado ao fracasso, mas, ainda assim, que vale sempre a pena tentar.

As tentativas de encontrar alterações neurobiológicas associadas à esquizofrenia foram por muitas décadas frustradas e só no final do século XX, graças a dados imagiológicos que as novas tecnologias de tomografia computorizada ofereceram, se conseguiu definir alterações características da doença.

A redução de massa cerebral, com diminuição da substância branca e cinzenta e alargamento dos ventrículos laterais, é um achado que surge desde cedo na história da doença, e que se associa a alterações celulares, com redução da ramificação dendrítica dos neurónios, e compactação dos mesmos.

Definimos assim uma doença caracterizada pela perda rápida de capacidades cognitivas e destruturação da personalidade, por sintomas ditos negativos que afectam todas as dimensões do funcionamento da pessoa e as aptidões sociais, e outros ditos positivos em que as alucinações auditivo-verbais e as ideias delirantes associadas são os mais típicos.

Sabemos também que a esquizofrenia é o resultado final de uma equação complexa de factores que actuam ao longo do desenvolvimento neurológico da pessoa.

Todos possuímos mais ou menos genes entre centenas associados à esquizofrenia. Estes, em interacção com factores do ambiente envolvente, podem facilitar o desenvolvimento neurológico que conduz a um sistema nervoso predisponente à manifestação da doença. Tipicamente na adolescência ou idade adulta jovem, a associação de factores desencadeantes, como o consumo de cannabinóides, ou o confronto com contextos de vida que obrigam a profundas adaptações (emigrar, serviço militar, …), podem dar início a um primeiro surto de doença. Este pode aparecer a qualquer momento, sem que a presença dos ditos factores desencadeantes seja obrigatória.

O diagnóstico de Esquizofrenia resulta da identificação dos sintomas já descritos, sendo necessário que estes evoluam há pelo menos 6 meses, e estando sintomas específicos sempre presentes no último mês.

Embora pareça linear, o diagnóstico torna-se difícil por uma série de razões. Desde logo pela incapacidade do doente em perceber que está doente, antes sente que algo exterior o está a influenciar de forma estranha e inexplicável. Depois, pela dificuldade das pessoas próximas em perceber a gravidade da situação, dada a radicalidade das alterações, difíceis de perceber por alguém sem preparação técnica.

Acrescentamos ainda o facto de muitos destes sintomas poderem ser confundidos com outras alterações psíquicas, como a fobia social, uma perturbação de ansiedade, fantasias criativas, ou simplesmente uma crise de crescimento.

Também a dificuldade do doente em exprimir o que sente, dada a estranheza da experiência, que o impede de encontrar palavras para explicar aos outros o que se passa consigo, é mais um factor que dificulta o diagnóstico. Acresce a desconfiança que o invade, associada à sensação de perda de controlo de si próprio e daquilo que o rodeia, impedindo-o de se abrir às pessoas significativas, e tentar falar-lhes sobre o que sente.

Outro aspecto prende-se com a demora em contactar um técnico. Entre as questões referidas que limitam o doente, e a insegurança dos mais próximos sobre o que fazer, nomeadamente, levá-lo a uma consulta com um profissional de saúde mental, a situação vai-se arrastando, sem que o diagnóstico surja.

Finalmente, a heterogeneidade dos quadros clínicos. Como temos visto, a esquizofrenia é uma doença de manifestação complexa. Entre os múltiplos sintomas que referimos, a forma como estes surgem de pessoa para pessoa varia muito. Tal facto está ilustrado na designação de muitos autores de “esquizofrenias” em vez de “esquizofrenia”, pelas grandes diferenças que observamos nos quadros clínicos.

O tratamento da esquizofrenia deve ser sempre orientado para a recuperação da pessoa e não apenas para a resolução dos sintomas agudos. Desde há muito que a psiquiatria se preocupa em tratar os doentes com esquizofrenia de forma multidisciplinar. As actividades ocupacionais, estruturadas de acordo com as capacidades e interesses da pessoa, o apoio psicológico, o apoio à família, actividades de treino de aptidões sociais e educação para a doença, a remediação cognitiva, a formação profissional, são todas vertentes igualmente importantes de um programa terapêutico.

O tratamento farmacológico é uma vertente particular do tratamento. A Cloropromazina é o primeiro antipsicótico, classe de fármacos destinado ao tratamento de perturbações psicóticas de que a esquizofrenia é o paradigma. Surge nos anos 50 do séc. XX, numa descoberta acidental, e desde aí, muitos outros foram surgindo.

Mas, até ao final do século XX, e apesar de todas as intervenções terapêuticas referidas existirem e serem tentadas desde há dezenas de anos, o tratamento tinha como principal objectivo o controlo dos sintomas positivos (alucinações, delírios), e todos os outros problemas que referimos (deterioração cognitiva, desagregação da personalidade, apagamento global da pessoa) persistiam invariavelmente, sendo ilusório alcançar outros ganhos terapêuticos.

A vida de uma pessoa com esquizofrenia resumia-se por isso, a maior parte das vezes, a estar em casa sem ocupação, sem projecto de vida, sem relações significativas.

Depois do início do uso de antipsicóticos atípicos, no final dos anos 1990, fármacos mais complexos na sua acção a nivel neuronal, os objectivos do tratamento vão sendo cada vez mais ambiciosos e, actualmente, é natural que se procure a recuperação completa da pessoa.

Actualmente, é normal a pessoa com esquizofrenia ter uma ocupação socialmente integrada, relações significativas, actividades em grupo, enfim, uma vida preenchida e realizada. Ou seja, não sendo os medicamentos “o tratamento”, a sua presença e o tipo de medicação usada determina a eficácia de todas as outras intervenções.

A valorização da medicação prende-se com este papel decisivo que a sua presença tem no plano terapêutico, e não pretende de todo ignorar ou pôr em causa a importância das outras vertentes terapêuticas.

A “ambivalência” é provavelmente a palavra-chave na definição da manutenção da estabilidade a longo prazo. É importante que o plano terapêutico se mantenha durante anos, ajustado à evolução da pessoa doente, e que o vínculo com os serviços de psiquiatria não se perca. Mesmo numa situação de recuperação da pessoa, em que esta não apresenta sintomas da doença, está integrada, funcionante, activa, e fez uma aprendizagem que lhe permite integrar as suas experiências enquanto em crise como fruto da doença, a ambivalência em relação à natureza dos sintomas persiste.

Só o próprio sabe como tudo o que sentiu foi experimentado como algo exterior a si próprio, a que é totalmente alheio. Algo a que foi submetido de alguma forma estranha, de que foi vítima, com alguma explicação mais ou menos bizarra que acabou por intuir.

Esta experiência tão radical, associada ao peso que as intervenções terapêuticas têm na vida da pessoa, pelo tempo e dinheiro dispendido, pelos eventuais efeitos secundários e ainda pelo estigma de necessitar de apoio em saúde mental, podem acabar por levar a um desinvestimento no tratamento.

E, por outro lado, todos temos a “memória curta”. Tendemos a evitar pensar ou até negar situações de grande sofrimento, sobretudo se vividas com a sensação de perda de controlo da situação, como algo que não é de mim, mas apenas um azar de que fui vítima por estar no local errado à hora errada. Embora todos à minha volta me digam que estava doente, há muito me mim que me diz que aquilo porque passei não será doença nenhuma. Por tudo isto é fácil a pessoa abandonar o plano de tratamento. E, num momento inicial, com ganhos substanciais, pois os efeitos desse tratamento perduram por alguns meses, a pessoa sente-se bem, sem sintomas, sem dificuldades de funcionamento em qualquer aspecto da sua vida, tem mais autonomia e tempo livre para coisas agradáveis, ou simplesmente para não fazer nada.

Até os familiares alimentam dentro de si a secreta esperança de que tudo passou e já não há motivos de preocupação nem justificação para mais tratamentos.

Dar voz a esta ambivalência é o aspecto mais nuclear para a manutenção do apoio, quando (felizmente) já nada parece justificar que este se mantenha.

Autor: 
Dr. João Albuquerque – Psiquiatra e Diretor Clínico de uma das 12 Unidades de Saúde do Instituto Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Pixabay