Doenças Inflamatórias do Intestino: sintomas pouco específicos tendem a ser desvalorizados
Em Portugal, estima-se que cerca de 20 mil pessoas vivam com doença inflamatória do intestino. Um número com tendência a aumentar. No entanto, são muitos ainda aqueles que desconhecem que patologias são estas. Neste sentido, pergunto o que são as doenças inflamatórias do intestino e quais os principais sintomas?
Tal como o nome indica, as doenças inflamatórias do intestino representam doenças crónicas com envolvimento primário do tubo digestivo. São representadas por 2 entidades principais: a Doença de Crohn e a Colite Ulcerosa. Embora ainda se desconheça as suas causas, admite-se existir uma interação entre fatores ambientes e genéticos resultando numa resposta imunológica inadequada com inflamação do intestino. Apesar da Doença de Crohn e Colite Ulcerosa serem doenças distintas, por vezes existe uma sobreposição de sintomas. As manifestações clínicas mais frequentes incluem perda de peso não explicada, febre recorrente, dor abdominal, diarreia crónica (com ou sem sangue) e perdas de sangue pelo ânus. Ocasionalmente, a primeira apresentação poderá ser representa por queixas perianais (fístulas e abcessos) e outras manifestações extraintestinais incluindo atraso do crescimento (crianças), anemia, queixas articulares, aftas orais recorrentes e alterações dermatológicas.
O que distingue a Doença de Crohn da Colite Ulcerosa? Qual a que apresenta um pior prognóstico?
Embora sejam frequentemente agrupadas, falamos de doenças com apresentação, evolução e tratamento distintos.
A Colite Ulcerosa envolve primariamente o intestino grosso, dependendo as suas manifestações clínicas da extensão de envolvimento do mesmo. Enquanto as formas mais distais (i.e. envolvendo apenas o reto) poderão manifestar-se através de perdas de sangue pelo ânus, formas mais extensas poderão manifestar-se por diarreia (com ou sem sangue), dor abdominal, febre e perda de peso.
A Doença de Crohn pode envolver qualquer segmento do tubo digestivo da boca até ao ânus, sendo que em 2/3 dos doentes verifica-se um envolvimento do segmento mais distal do intestino delgado. As manifestações clínicas poderão incluir diarreia (habitualmente sem sangue), dor abdominal, febre e perda de peso. Até 1/3 dos doentes poderá apresentar envolvimento perianal com aparecimento de fístulas perianais, abcessos ou fissuras anais recorrentes. Infelizmente, alguns doentes apresentam uma dissociação entre os sintomas e o grau de inflamação intestinal, motivo pelo qual a ausência de sintomas não significa necessariamente a ausência de atividade da doença.
O prognóstico destas doenças é bastante variável, sendo condicionado por múltiplos fatores. Os doentes apresentam uma esperança de vida igual à da população em geral. Contudo, especialmente se não tratadas, as doenças inflamatórias do intestino podem condicionar e limitar de forma significativa a qualidade de vida dos doentes. Apesar de nos últimos anos se ter assistido a uma evolução considerável nos tratamentos farmacológicos, a necessidade de cirurgia continua a ser uma realidade numa percentagem significativa de doentes: entre 10-15% dos doentes com Colite Ulcerosa e formas refratárias de doença poderão necessitar de cirurgia. No caso da Doença de Crohn, até 50% dos doentes poderão necessitar de pelo menos uma cirurgia nos primeiros 10 anos após o diagnóstico.
Apesar de as causas não serem conhecidas, que fatores podem desencadear a doença?
Uma das associações ambientais mais bem estabelecidas com as Doenças Inflamatórias Intestinais inclui o consumo de tabaco. Na Doença de Crohn, o tabagismo associa-se a uma evolução mais agressiva da doença com menor resposta aos tratamentos, maior número e gravidade das crises, maior probabilidade de cirurgia e maior probabilidade de recidiva após a cirurgia. Deste modo, todos os doentes deverão ser aconselhados a deixar de fumar.
No caso da Colite Ulcerosa, parece existir alguma evidência de uma associação inversa. Contudo, dado que existe um risco acrescido de fenómenos trombóticos venosos e arteriais, além dos riscos oncológicos e respiratórios já conhecidos associados ao tabaco, deverá ser igualmente recomendada a sua suspensão. Não existe evidência de um papel do tabaco no tratamento da Colite Ulcerosa, nem evidência que suporte a utilização de métodos alternativos de consumo de nicotina.
Além do tabaco, as análises de estudos populacionais publicados sugerem uma associação entre recidivas da doença e o consumo de anti-inflamatórios não esteroides (embora provavelmente seguros durante curtos períodos). Reconhecem-se outras associações menos estabelecidas com a utilização de contracetivos orais e com a realização prévia de apendicectomia.
Alguns especialistas associam-na a algumas doenças de carácter autoimune, por exemplo. Qual a relação?
Sabemos que existe um componente genético associado a estas doenças, com múltiplos genes de suscetibilidade já identificados e resultando em processos de desregulação imunológica. Estes genes de suscetibilidade são comuns a muitas outras patologias autoimunes. Por este motivo, não é incomum verificar-se a coexistência de mais do que uma doença autoimune no mesmo doente.
Quais as faixas etárias mais atingidas pela Doença Inflamatória Intestinal? E a partir de que idade podem surgir os primeiros sintomas?
Trata-se de uma patologia que pode afetar pessoas de todas as idades. Contudo, por norma verifica-se um pico de incidência mais elevado entre os 15 e os 30 anos e um menor entre os 50-70 anos. Como anteriormente referido, por vezes os sintomas podem ser menos exuberantes ou apresentar pouca especificidade. Deste facto resulta que, muitas vezes, os sintomas são mal interpretados ou desvalorizados resultando num atraso significativo entre a sua apresentação e o diagnóstico.
Considerando as suas manifestações clínicas, e sabendo que podem ocorrer alguns sintomas que não se relacionam diretamente com o intestino (como a inflamação das articulações), com que outras patologias podem ser confundidas?
Embora algumas apresentações clínicas mais exuberantes possam aumentar o grau de suspeita clínica resultando num diagnóstico precoce, em muitos casos os sintomas podem ser inespecíficos resultando em atrasos consideráveis até ao diagnóstico.
Refira-se como exemplo sintomas gastrointestinais como a dor abdominal, diarreia e obstipação, habitualmente encontrados na população geral.
Relativamente ao diagnóstico diferencial, este deverá ser adaptado à faixa etária e história clínica prévia do doente. Enquanto algumas patologias são comuns ao longo da vida (síndrome do intestino irritável, gastroenterites, patologias do foro proctológico, hemorroidas, fissuras), importa excluir na população mais jovem outras patologias imunomediadas como a doença celíaca e imunodeficiências primárias. Nas faixas etárias mais avançadas, é importante excluir o cancro do cólon.
Por fim, embora menos frequente, alguns doentes poderão ser diagnosticados no seguimento da investigação de quadros extraintestinais (ex. anemia, aftas orais recorrentes, patologia do foro articular).
Como é feito o seu diagnóstico? Que exames são necessários para confirmar a doença?
Atualmente não dispomos de um teste de rastreio para estas doenças. Por outro lado, dado que algumas doenças podem apresentar-se de forma semelhante às doenças inflamatórias do intestino (ex. gastroenterites), o diagnóstico passa pela interpretação em conjunto de vários exames de diagnóstico incluindo análises ao sangue e fezes, exames radiológicos (ex. TAC/Ressonância magnética/Ecografia) e pela realização de colonoscopia com exame histológico.
Em que consiste o tratamento? E em que casos é considerada a cirurgia?
Embora se reconheça uma percentagem muito reduzida de doentes com formas muito ligeiras da doença ou importantes comorbilidades que justifiquem a não introdução de um tratamento farmacológico, o carácter progressivo e potencialmente debilitante destas doenças implica geralmente a realização de tratamento. Este tratamento deverá ser individualizado, de acordo com a idade, sexo, história clínica prévia e características próprias da doença (localização, extensão e gravidade).
O tratamento inclui duas fases: a indução (de modo a controlar a doença e atingir a remissão dos sintomas) e a manutenção (de modo a prevenir o ressurgimento de sintomas ou atividade da doença).
Referindo-se como exceção algumas formas de Colite Ulcerosa que poderão ser tratados com formas orais ou tópicas (supositórios/enemas) de aminossalicilatos, as terapêuticas farmacológicas incluem geralmente a utilização de fármacos imunossupressores (orais, subcutâneos ou endovenosos). Embora não sejam desprovidos de potenciais efeitos secundários, estes fármacos são habitualmente bem tolerados e traduzem-se em importantes melhorias na qualidade de vida dos doentes. Casos pontuais poderão ser manejados através da utilização de antibióticos. Como referido anteriormente, a cirurgia poderá ser necessária durante a evolução da Doença.
No caso da Doença de Crohn, o tratamento cirúrgico envolve a resseção de segmentos curtos de intestino delgado/cólon, encontrando-se recomendado em formas complicadas da doença incluindo o tratamento de estenoses (apertos do intestino), abcessos e fístulas. Em doentes com envolvimento perianal, a cirurgia poderá ser necessária para drenagem de abcessos e fístulas com ou sem colocação de dispositivos de drenagem (i.e. sedânios). Em casos pontuais poderá ser necessária a realização de cirurgia para controlo da doença refratária ao tratamento médico.
Na Colite Ulcerosa, a cirurgia encontra-se habitualmente reservada para as formas mais graves da doença, em que não se verifica resposta ao tratamento médico ou no contexto de complicações específicas (hemorragia, perfuração, neoplasia). Refira-se que a cirurgia na Colite Ulcerosa envolve a receção de todo o intestino grosso, não sendo, contudo, curativo da doença.
Quais as principais complicações da doença? E, neste sentido, quais os principais cuidados a ter após o diagnóstico?
É importante percebermos que um processo inflamatório não controlado resulta em alterações estruturais e funcionais importantes em qualquer órgão. No caso da Doença de Crohn, falamos do desenvolvimento de estenoses e fístulas condicionando quadro de suboclusão (obstrução do intestino) e infeção, respetivamente, resultando irremediavelmente em cirurgia. Ao longo do tempo a resseção de segmentos de intestino poderá resultar num intestino curto, resultando em quadros graves de mal absorção associados. Refira-se ainda que, mal controlada, a doença pode associar-se associada a um aumento do risco de osteoporose e de eventos trombóticos arteriais e venosos. Nas doenças envolvendo predominantemente o intestino grosso (i.e. Colite Ulcerosa), verifica-se igualmente um aumento do risco de cancro do cólon (sendo este mais evidente em formas de doença não controlada), pelo que deverão ser adotadas estratégias específicas de vigilância por colonoscopia. Como é percetível, todas estas situações diminuem de forma significativa a qualidade de vida dos doentes.
Neste sentido, é importante que, após estabelecido o diagnóstico, seja realizada uma estratificação do risco da doença e do plano terapêutico. Esta passará inicialmente pela tentativa de indução rápida de remissão e posteriormente da manutenção desta remissão.
Qual a importância da alimentação para o bom prognóstico da doença? Existem restrições alimentares para estes doentes?
Recomenda-se que os doentes adotem um estilo de vida e alimentação saudáveis. Atualmente, não dispomos de evidência suficiente para recomendar um tipo específico de dieta como terapêutica para as doenças inflamatórias do Intestino. Contudo, poderão ser necessários alguns ajustes alimentares em casos selecionados com doença estenosante ou após cirurgia. Dada a sua complexidade, estas decisões deverão ser tomadas de forma multidisciplinar (médico e dietista). Existe ainda alguma evidência, em idade pediátrica, para a utilização de terapêutica à base de nutrição para induzir a remissão da doença (mas não para a sua manutenção). Mais uma vez, dada a complexidade destes procedimentos, estas estratégias deverão ser consideradas apenas após decisão multidisciplinar.
Finalmente, importa perceber que não existe qualquer evidência associando um tipo específico de alimento e o desenvolvimento ou progressão da doença. Por este motivo, a exclusão de alimentos como forma de terapêutica destas doenças não pode atualmente ser recomendada.
Que outros hábitos de vida podem condicionar o tratamento da doença?
Os doentes deverão almejar por manter hábitos de vida saudáveis (exercício físico e alimentação). Reforça-se, mais uma vez, a importância da suspensão dos hábitos tabágicos em todos os doentes.
Quais os principais mitos associados à doença inflamatória do intestino?
Salientam-se alguns:
Alimentação - Existe frequentemente a perceção de que, ao atingir o intestino, a doença resulta de maus hábitos alimentares, motivo pelo que o seu tratamento deveria também passar pela evicção ou consumos de alimentos específicos. Como anteriormente referido, a evidência clínica de que dispomos atualmente não suporta estas afirmações.
Gravidez – A doença inflamatória intestinal, controlada, não se associa a um aumento dos riscos maternos (aborto) e para a criança (malformações, prematuridade, baixo peso à nascença). Embora com algumas exceções, os tratamentos para as doenças inflamatórias do intestino são seguros e deverão ser continuados durante a gravidez e aleitamento.
Transmissão genética - como referido anteriormente, reconhecem-se múltiplos genes de suscetibilidade associados ao desenvolvimento das doenças inflamatórias do intestino. Por este motivo, é relativamente frequente os doentes apresentarem um familiar com o mesmo tipo de doença. Contudo, a transmissão genética não se segue os princípios Mendelianos, i.e. não se transmite linearmente de pais para filhos.
No âmbito do Dia Mundial da Doença Inflamatória do Intestino, que mensagem gostaria de deixar?
As doenças inflamatórias do intestino representam patologias crónicas e progressivas podendo condicionar de forma significativa a qualidade dos doentes que delas padecem.
Embora atualmente não nos seja possível prevenir ou curar estas doenças, dispomos de tratamentos eficazes e com um bom perfil de segurança. Evidência científica crescente demonstra que a utilização precoce destas terapêuticas se traduz numa alteração da história natural da doença, reduzindo de modo significativo a necessidade de terapêuticas de resgate, recidivas clínicas, da necessidade de internamento hospitalar e cirurgia.
Neste sentido, reforça-se a necessidade de diagnosticar, referenciar e tratar rapidamente estas doenças.