A doação em vida pode “mudar a vida de alguém que muitas vezes está ao nosso lado”
Há 52 anos, o cirurgião Linhares Furtado fez o primeiro transplante de um órgão vital no país. Este transplante renal foi o primeiro de muitos. Desde essa altura, como tem evoluído a área da transplantação em Portugal? Que outros marcos se podem destacar?
A história da transplantação em Portugal é de sucesso dado que ao longo dos anos foi possível constituir programas de transplantação de diferentes órgãos que permitem que nesta área estejamos na vanguarda mundial. Em 1969, realizou-se em Portugal o primeiro transplante renal, neste caso de dador vivo. O primeiro transplante renal de dador falecido realizou-se em 1980, simultaneamente em Coimbra, também pela equipa do Professor Linhares Furtado e em Lisboa pela equipa do Dr. João Pena. De destacar ainda, o transplante de coração em 1986 (Professor Queirós e Melo); fígado em 1993 (Dr. João Pena); pâncreas em 1993 e intestino em 1996 (Professor Linhares Furtado) e pulmão em 2001 (Professor José Fragata).
Em Portugal, os pares de dador vivo que por incompatibilidade AB0 ou por apresentarem anticorpos que aumentem o risco de rejeição poderão ser inscritos no Programa Nacional de Doação Cruzada. Este programa tem como objetivo conseguir um par AB0 compatível ou um par mais compatível por forma a reduzir o risco de rejeição. De uma forma simplista, se isso for possível há uma troca de órgãos e assim consegue-se realizar a doação. O ano passado realizou-se o primeiro cruzamento internacional entre um par português e um espanhol. Portugal integra o Programa Internacional de Doação Cruzada através da “South Alliance for Transplantation”.
Outro marco importante, pela possibilidade de aumentar o número de dadores e consequentemente de transplantes, foi a possibilidade de realização de transplante em dadores em paragem cardiocirculatória que teve o seu início em 2016.
Dada a sua complexidade, quais os principais desafios desta área?
Desde sempre o grande desafio para a transplantação é a escassez de órgãos. Não existe nenhum país no mundo que consiga realizar o número de transplantes necessários para responder às necessidades dos doentes em lista de espera.
Outro grande desafio é conseguir evitar a rejeição. Atualmente existem vários fármacos que conseguiram reduzir e tratar os episódios de rejeição aguda. No entanto, a longo prazo ainda é difícil evitar a rejeição crónica e os efeitos da imunossupressão a longo prazo (infeções e neoplasias). Os profissionais de saúde que trabalham nesta área anseiam por novas armas terapêuticas que permitam ultrapassar este problema.
Nos últimos anos, Portugal tem sido um dos países líderes, a nível mundial, na área da transplantação, no entanto, o último ano foi um ano atípico. De que forma a pandemia COVID-19 impactou esta área de atividade?
Numa primeira fase, a pandemia SARS-CoV-2 teve como consequência a suspensão da realização dos transplantes não urgentes. Como ninguém sabia o que poderia ocorrer, nomeadamente em termos de risco de transmissão da infeção de dador para recetor ou qual a consequência de uma infeção COVID-19 nos recetores de transplante, em Portugal assim como nos outros países considerou-se ser prudente a interrupção dos programas de transplante. Para além desta medida, o desvio dos recursos humanos e técnicos (nomeadamente ventiladores dos blocos operatórios) para as áreas e doentes COVID-19 respetivamente contribuíram para essa diminuição. A recomendação de diminuir a afluência aos hospitais também contribuiu para que os exames para estudo pré-transplante ou de dador vivo fossem suspensos e consequentemente atrasassem o estudo e entrada de doentes em lista ativa.
Ainda assim, o balanço foi positivo, quando comparado com os dados globais…
É verdade. Apesar das limitações impostas pela pandemia na primeira fase, foi possível recuperar parcialmente os números de doação e transplantação em Portugal. Nos períodos entre os picos de pandemia, os profissionais de saúde mantiveram-se atentos e sinalizaram os potenciais dadores e as unidades responderam transplantando esses órgãos. Foi necessária uma grande adaptação dos profissionais de saúde e das instituições hospitalares criando novos procedimentos e circuitos para manter a assistência aos doentes transplantados.
Não obstante, nos últimos anos tem-se assistido a um decréscimo do transplante cardíaco e um aumento do transplante pulmonar. O que isto tem para nos dizer?
Em relação ao transplante cardíaco, a diminuição do número de transplantes é multifatorial. Por um lado, os dadores são tendencialmente mais idosos e com várias patologias, como consequência o órgão não terá as características necessárias para ser aceite para transplante. Por outro lado, a técnica evoluiu e a criação de dispositivos cardíacos tem permitido atrasar a necessidade de transplante. Os doentes vivem mais tempo sem precisarem de um transplante.
Em relação ao transplante pulmonar a formação de uma equipa com acumular de experiência permitiu que o programa de transplante pulmonar do Hospital Santa Marta mantenha o seu crescimento e consiga aumentar a sua capacidade de resposta. Atualmente, Portugal já não necessita de orientar os seus doentes com necessidade de transplante pulmonar para outras unidades no estrangeiro.
De um modo geral, quais os tipos de transplante que mais se realizam em Portugal? E quais os principais dadores de órgãos?
Os órgãos mais transplantados em Portugal e no mundo são os rins e o fígado.
Os dadores de órgãos são maioritariamente de dadores falecidos (cerca de 90%). No entanto, desde 2016, ano em que foi instituída a possibilidade de colheita em dadores em paragem cardiocirculatória em algumas unidades os dadores deste tipo podem atingir os 30%.
Nos últimos anos, fruto do avanço da ciência que permitiu por um lado aumentar a segurança rodoviária e por outro criar técnicas de suporte que permitiram salvar mais vidas, o número de dadores em morte cerebral tem diminuído e as causas de morte são maioritariamente médicas (AVC, hemorragias cerebrais e enfartes de miocárdio) e menos por trauma. A consequência é que os dadores são mais idosos e com mais doença.
Tendo em conta, por exemplo, que mais de metade dos transplantes renais são possíveis através da colheita de órgãos de dadores vivos, qual a importância de sensibilizar a população para a doação de órgãos? Considera que os portugueses estão devidamente sensibilizados ou esclarecidos sobre este tema?
A população portuguesa sempre se mostrou generosa em relação à doação de órgãos. Todos nós somos potenciais dadores (exceto se houver inscrição no Registo Nacional de Não Dadores – RENNDA) e raramente há recusa na doação. Em relação à doação em vida ainda poderemos melhorar muito. A doação em vida permite que um doente renal crónico possa ser transplantado mais rapidamente (não nos podemos esquecer que o tempo médio em lista de espera para dador falecido é de cerca de 5,5 anos). Sendo uma cirurgia programável poderá mesmo sê-lo antes de entrar em diálise e ainda por este motivo o rim não necessita de esperar como nos casos de dador falecido e assim os resultados são melhores.
O receio de complicações, muitas vezes muito mais evidente por parte do recetor que tem medo de causar doença ao seu potencial dador, faz com que a percentagem deste tipo de doação ainda seja baixa no nosso país. Serão necessárias campanhas de esclarecimento dos familiares de doentes com doença renal crónica, profissionais de saúde e população em geral para que a informação que é veiculada seja a correta e não com pressupostos e ideias incorretas.
O que garante a viabilidade de um transplante?
A viabilidade depende de múltiplos fatores e do tipo de órgão que estamos a falar. O pulmão, coração e fígado são mais sensíveis ao tempo de espera pelo que são transplantes cujo sucesso está muito dependente do tempo em que estão preservados. Por outro lado, o tipo de dador também é muito importante. Os órgãos de dadores mais idosos tendencialmente terão uma duração menor, motivo porque é aconselhável que o transplante de órgãos de dadores mais idosos seja para recetores também com mais idade. Outro fator muito importante para a duração de um órgão é também o grau de compatibilidade. Quanto mais compatível maior será a sobrevida (duração) do órgão e melhor será a sua função.
O grau de cumprimento da terapêutica e a prática de estilos de vida saudável são também fatores que influenciam a duração e função de um transplante.
Apesar da compatibilidade imunológica ser essencial, a verdade é que no ano passado, por exemplo, Portugal realizou o primeiro transplante renal cruzado, através de um programa internacional dirigido a doentes com grande incompatibilidade. Em termos práticos, o que pode significar o sucesso deste tipo de transplante para os doentes?
Este programa permite que pares dador-recetor de rim que não possam prosseguir diretamente com a doação (por incompatibilidade AB0 ou por risco de rejeição elevado devido a presença de anticorpos) o possam fazer através de uma inscrição num programa nacional em que se tenta arranjar um par compatível. Se existir esse par será efetuado o transplante através da troca do órgão. Este programa terá tanto mais sucesso quantos mais pares estiverem inscritos dado que assim aumenta a possibilidade de cruzamento. O sucesso do programa significa que mais doentes conseguem ser transplantados o que de outra forma não seria possível.
Após um transplante, quais os cuidados essenciais?
Os cuidados são diferentes para o dador nos casos de doação em vida e para o recetor. No caso do dador, desde que não haja complicações pode ser retomada a vida normal dentro de dois a três meses após a cirurgia, dependendo da profissão e atividade. Considera-se que ao fim de um mês já estará quase totalmente recuperado. Em princípio não irá necessitar de medicação a não ser para a dor decorrente da cirurgia. Poderão ser necessários antibióticos se houver uma infeção.
No caso de o dador ser mulher e quiser engravidar, deve esperar pelo menos seis meses após a cirurgia de doação.
O dador não deverá conduzir pelo menos nas primeiras 2 a 3 semanas após a cirurgia por uma questão de segurança, a dor poderá limitar os movimentos.
O dador ficará a ser seguido em consulta anual para toda a vida.
Em relação ao recetor: o rim poderá não funcionar logo após a cirurgia, podendo haver necessidade de realizar hemodiálise durante algum tempo. Após a cirurgia é necessária medicação para evitar a rejeição do novo rim (medicação imunossupressora).
O tempo de internamento após a cirurgia do transplante é variável, em média cerca de 7 a 10 dias, e depende de complicações que possam surgir neste período, nomeadamente complicações cirúrgicas, infeciosas, rejeição ou outras.
Quando tiver alta o doente deverá cumprir a medicação prescrita, para evitar a rejeição do transplante e outras complicações. É muito importante que o doente não falte às consultas e tome a sua medicação nas doses e horários prescritos. A vigilância regular permite a deteção precoce e o tratamento da rejeição e de outras complicações.
Para terminar, e no âmbito do Dia do Transplante, que mensagem ou mensagens gostaria de deixar?
A mensagem mais importante é que este dia é uma homenagem a todos os que estão envolvidos no processo de transplantação. É uma homenagem aos dadores, sem eles a transplantação não seria possível. É uma homenagem aos profissionais de saúde e todos os elementos que tornam possível o transplante (não nos podemos esquecer das forças de segurança ou Força Aérea que são essenciais para o transporte dos órgãos) e aos doentes que ao receberem um órgão percebem que essa dádiva poderá ser a oportunidade de uma nova vida.
Este dia também pretende chamar a atenção para a possibilidade da doação em vida e que poderá mudar a vida de alguém que muitas vezes está ao nosso lado.