A disfunção do aparelho urinário pode atingir até 80% dos doentes com Esclerose Múltipla
“A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crónica na qual o sistema imunitário do doente provoca a destruição da camada de mielina (daí o termo doença desmielinizante) que reveste as fibras do sistema nervoso central e que é essencial para a condução nervosa normal”, começa por explicar Ricardo Pereira e Silva, médico urologista do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. Segundo o especialista, a doença “pode afetar o cérebro e a medula espinhal em graus e localizações muito variáveis, com manifestações clínicas distintas, existindo diferentes tipos de EM de acordo com a evolução clínica”. Embora possa afetar pessoas de qualquer idade, o seu diagnóstico é mais frequente entre os 20 e os 40 anos.
Resultando da uma interação “entre múltiplos fatores ambientais e genéticos”, existem outros fatores como a obesidade, tabagismo, deficiência de vitamina D ou infeção pelo Virus Epstein-Barr que parecem contribuir para o seu desenvolvimento.
Quanto à complicações associadas, Ricardo Pereira e Silva, sublinha que embora as “sequelas motoras ou alterações do equilíbrio e da marcha” sejam as principais causas de incapacidade nestes doentes, outras há que embora sejam menos “visíveis” causam um grande impacto na qualidade de vida. “Outros sintomas possíveis são, nomeadamente, incontinência urinária, disartria (perturbação da fala), disfunção sexual ou alterações a nível psicológico/psiquiátrico (nomeadamente depressão)”, enumera.
Destas, há que prestar especial atenção às disfunções do aparelho urinário. É que “mesmo perante um cenário de incapacidade significativa gerada pelos sintomas já referidos, a incontinência urinária tem uma carga emocional e psicológica intrínseca que não deve nunca ser negligenciada”. “Um doente incontinente tem uma forte probabilidade de evitar o contacto pessoal, social, profissional ou sexual devido à sua condição, agravando ainda mais o impacto da doença em diversas valências da sua vida”, explica o especialista em urologia.
Em Portugal, estima-se que até 80% dos doentes com Esclerose Múltipla pode “ter disfunção do aparelho urinário, incluindo incontinência”. Habitualmente, esta condição surge associada à bexiga hiperativa.
“A bexiga hiperativa é uma síndrome clínica que consiste na ocorrência de episódios de urgência miccional (vontade súbita e inadiável de urinar) que podem ou não ser acompanhados de incontinência urinária (que é o sintoma que consiste na perda involuntária de urina)”, distingue Ricardo Pereira e Silva. Entre os sinais a que devemos estar atentos, o especialista esclarece que “a necessidade de ir com muita frequência (por vezes de meia em meia hora) ao WC, com consequente interrupção das atividades, necessidade de planeamento prévio e, frequentemente, de procura antecipada de casas-de-banho ao chegar a qualquer lugar” são os que mais impactam a qualidade de vida destes doentes.
Para o seu tratamento existem duas classes de medicamentos disponíveis. “Quando o tratamento inicial e ineficaz, a injeção de toxina botulínica na bexiga ou a implantação de um neuromodulador de raízes sagradas são igualmente tratamentos passíveis de ser utilizados”, acrescenta o especialista.
“A neuromodulação de raízes sagradas consiste na implantação de um elétrodo junto às raízes nervosas da cavidade pélvica que é ligado a um gerador de estímulos (semelhante a um pacemaker cardíaco)” e tem como objetivo reduzir o número de idas à casa-de-banho, reduzir a sensação de urgência e da incontinência urinária “quando presente”, permitindo “a melhoria ou normalização do esvaziamento”.
Segundo o urologista, esta intervenção “é realizada sob anestesia local (em dois tempos, um primeiro para a colocação do elétrodo e um segundo para o gerador de estímulos) – o procedimento em si é relativamente rápido e, após a implantação do gerador definitivo, o dispositivo fica alojado na nádega, não exigindo cuidados específicos”.
Apesar de ter tratamento, Ricardo Pereira e Silva admite que o estigma associado à incontinência urinária “é ainda um grande obstáculo”. “Existem problemas e doenças sobre os quais as pessoas não gostam de falar, por se sentirem envergonhadas ou diminuídas. Surpreendentemente, os próprios médicos nem sempre questionam o suficiente também. É por isso que batalhamos diariamente pela consciencialização da sociedade para estas questões que devem ser adequadamente diagnosticadas e tratadas”, sublinha.
“O doente neurológico, porque muitas vezes tem limitações de outra índole, pode cair no erro de relegar este sintoma para um segundo plano, tentando simplesmente aceitá-lo, mesmo que a incontinência fira a sua dignidade e condicione gravemente a sua vida. No entanto, o ganho de qualidade de vida decorrente do tratamento adequado é muito grande e vale a pena envidar todos os esforços nesse sentido”, reforça apelando a que os doentes procurem ajuda.