Regresso à rotina

Crianças na creche

Atualizado: 
26/05/2020 - 10:57
As creches acabam de reabrir depois de os bebés terem estado dois meses em casa. Como tem sido a adaptação das crianças foi o que quisemos saber com a psicóloga infantil Marta Calado.

O medo coletivo, aliado à imperativa e vigilante prevenção, irá causar um período de adaptação caracterizado por três fases principais, relacionadas com as fases de preparação e resposta das famílias, nesta etapa que se avizinha de regresso às creches pós-confinamento: uma primeira fase de alarmismo, questionamento, dúvida e inquietude, de alerta-vermelho permanente; a fase da acalmia e da habituação a rotinas do dia-a-dia, que se verificam como funcionais e eficazes; a fase do relaxamento e da deslembrança motivados pela secundarização do medo, em primazia da busca de afetos e de necessidades, sem filtros ou impedimentos.

As principais preocupações dos pais prendem-se com a insegurança quanto à execução de medidas de limpeza, higiene, segurança, descontaminação e distanciamento, por parte dos agentes escolares, que interagem diariamente com os seus filhos e que são os principais responsáveis na precaução do risco pela transmissão vírica.

Prendem-se também com o impacto psicológico que poderá causar nos filhos a presente realidade, impeditiva de grandes e demoradas manifestações de proximidade e castradora de reações infantis espontâneas, sob pena da ocorrência de reprimendas incitadoras de códigos de conduta subordinados à sobrevivência num mundo doente. Apesar de as crianças mais novas não serem consideradas um grupo de risco para a COVID-19, e de serem também a faixa etária que apresenta menos complicações face a esta doença, o grande perigo são os assintomáticos que se poderão tornar veículos silenciosos de propagação do vírus. Os pais desconfiam e duvidam: será que existe uma forma de garantir a segurança das crianças desta idade? As instalações estão realmente preparadas para a reabertura com novas medidas de proteção de alunos e funcionários? Existem recursos humanos e materiais suficientes e suficientemente bem formados? A abertura das instituições vai aumentar a propagação do vírus e o meu filho poderá vir a ser um dos futuros contaminados?

As creches são lugares de afetos, de proximidade, de descoberta do mundo com a presença do outro, com o corpo, sobretudo a boca e as mãos. Pegar ao colo, olhar nos olhos, comunicar através da expressão facial, do toque são afetos que asseguram e consolidam as interações e o vínculo entre crianças e educadores e asseguram um desenvolvimento psiconeurológico salutar. Por isso, devemos reconhecer que, devido às características destas respostas e à maior dificuldade em aderir às medidas preventivas por parte das crianças deste grupo etário, existe potencial de transmissibilidade de SARS-CoV-2 nas creches, creches familiares e amas. Todavia, os pais devem manter-se informados, entre si em grupos de partilha de informação online, junto de fontes de informação credíveis e junto da comunidade escolar, no sentido de existir conciliação de procedimentos na articulação creche-casa (e vice-versa) e entre os vários elementos que compõem o grupo escolar, para que as famílias se sintam capazes de uma tomada de decisão informada e consciente.

Tendo em conta a idade das crianças (0-3 anos), irão comportar-se dentro dos limites físicos e de regulação comportamental permitidos e implementados pelos educadores e auxiliares e à forma como estes exercem uma atitude, ou distanciada, ou conscienciosa, perante esta nova normalidade. As crianças precisam de sentir controlo e confiança na atitude dos adultos que as querem proteger, que são capazes de criar condições para que se sintam seguras e que não acontece nenhuma desgraça se, no meio da brincadeira, derem as mãos ou até um beijo ou um abraço a um amigo. Não podemos estar à espera que crianças desta idade andem de máscara, se distanciem cerca de 2 metros dos colegas, respeitem as marcas de sinalização vincadas no chão, ou lavem as mãos antes e depois de tocarem numa superfície. Perante o impedimento de uma ação que era tida como habitual para a criança, p. ex. gatinhar entre diferentes espaços ou pegar aleatoriamente nos brinquedos e objetos, poderá reagir com choro, birra ou reação agressiva. No entanto, as crianças manifestam uma elevada capacidade de adaptação, primeiramente vão estranhar as máscaras, mas depois vão abstrair-se, vão conquistar o seu espaço perante um sem-número de cuidados e ralhetes, mas irão também aprender a relativizar e integrar os novos comportamentos. As crianças apoiam-se entre elas e irão revelar capacidade de ser ajustar dentro das novas dinâmicas planeadas pelos educadores e auxiliares.

É normal que as crianças manifestem níveis mais elevados de stress, agitação, irritabilidade e instabilidade no sono e na alimentação, sobretudo depois de um longo período de confinamento, junto das principais figuras de vinculação. As crianças da creche não percebem o porquê de não se poderem abraçar e tocar ou pedir colo e mimos e nem devem ser ensinadas a proceder de forma oposta àquela que é genuína da natureza humana. Uma criança de máscara não consegue brincar livremente, porque está a assumir uma responsabilidade que não é sua.

Se vamos ter que viver com o vírus durante muito tempo, então mais do pensar em não o contrair, precisamos de pensar em não o deixar destruir a nossa saúde mental, sobretudo, a daqueles que não se sabem defender.

Autor: 
Dra. Marta Calado - Psicóloga Infantil na Clínica da Mente
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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