Dra. Ana Joaquim, Presidente do Grupo de Estudos do Cancro da Cabeça e Pescoço

“Contrariamente a outros tipos de cancro, mais silenciosos, o cancro da cabeça e pescoço dá sinais precocemente”

Atualizado: 
21/09/2021 - 10:48
Apesar da gravidade e do aumento do número de diagnósticos, o Cancro da Cabeça e Pescoço continua a ser pouco valorizado. Com sintomas comuns a muitas outras doenças benignas, grande parte dos casos é diagnosticada já em fases muito avançadas, comprometendo não só o tratamento, como a qualidade de vida dos doentes. Segundo um inquérito internacional, realizado no âmbito da Campanha Make Sense, mais de metade dos sobreviventes afirma que a doença teve um impacto fortemente negativo no seu bem-estar emocional pós-tratamento. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Ana Joaquim, Presidente do Grupo de Estudos do Cancro da Cabeça e Pescoço, mostra como podemos mudar esta realidade.

Apesar de ser um dos tipos de cancro mais frequentes, a sociedade ainda está pouco sensibilizada para o Cancro da Cabeça e Pescoço, tanto que o seu diagnóstico chega, quase sempre, em fases avançadas da doença. Assim, para ajudar a entender em que consiste, pergunto: de que estamos a falar quando falamos de Cancro da Cabeça e Pescoço?

O Cancro de Cabeça e Pescoço engloba, de forma lata, os tumores das vias aerodigestivas (que se originam nas mucosas das vias por onde passa o ar e os alimentos, ou seja, a boca, o nariz, a faringe e a laringe) e, ainda, das glândulas salivares, tiroide e da pele da cabeça e pescoço.

Do conjunto de tumores que integram este grupo, quais os mais frequentes e aqueles que à partida podem apresentar um pior prognóstico, quer no que diz respeito à sua sobrevivência, que à qualidade de vida pós-tratamento? 

Os tumores que, de forma estrita, constituem o cancro de cabeça e pescoço são os das vias aerodigestivas. São o sétimo cancro mais frequente na Europa, tendo a particularidade de serem diagnosticados, na maior dos casos, em fases avançadas, quando a probabilidade de cura é inferior aos 50%. Por outo lado, o tratamento desta doença é mais agressivo nos casos de doença avançada, geralmente implicando várias modalidades terapêuticas, como a cirurgia e/ou radioterapia, a qual poderá ser associada a quimioterapia. Ora, estes tratamentos podem deixar sequelas ao nível das funções vitais das estruturas afetadas, como sejam a fala, a ingestão de alimentos e a respiração. De forma a se conseguir otimizar a qualidade de vida das pessoas que vivem com e para além destas doenças, é fundamental que a reabilitação destas, e outras funções que poderão, também, ser afetadas, se inicie precocemente, idealmente antes do início dos tratamentos, capacitando as pessoas para a jornada terapêutica.

De um modo geral, a que sinais devemos estar atentos? Quais as principais manifestações clínicas do Cancro da Cabeça e Pescoço?

Os sintomas do cancro de cabeça e pescoço são comuns a várias doenças benignas das mesmas zonas, nomeadamente: feridas, aftas e lesões brancas ou vermelhas na boca; dor de garganta; dificuldade na ingestão de alimentos; rouquidão; escorrência nasal, em particular se unilateral e/ou com sangue; massas ou nódulos no pescoço.

Como são comuns a várias doenças benignas, o tempo assume um importante papel no grau de suspeição. Ou seja, na presença de um ou mais daqueles sintomas que persistam 3 ou mais semanas, deverá ser procurado um médico.

Na sua opinião, por que motivo este tipo de cancro é, muitas vezes, diagnosticado em fases já avançadas? Sabendo que grande parte a população só tem acesso aos cuidados de saúde primários, e ao Serviço Nacional de Saúde, qual a importância dos médicos de família para este diagnóstico? Considera que estes estão devidamente despertos para esta problemática?

Esta é uma questão muito importante. Contrariamente a outros tipos de cancro, mais silenciosos, habitualmente o cancro da cabeça e pescoço dá sinais precocemente. No entanto, estes são comuns a muitas doenças benignas. E, na verdade, ainda hoje vemos na consulta uma grande percentagem de doentes que procuram o médico vários meses após os sintomas terem começado. Daí a importância destas campanhas se destinarem à sensibilização e informação da população geral sobre esta temática.

Por outro lado, a higiene oral e a avaliação clínica das vias aerodigestivas são temas não muito valorizados desde o ensino universitário dos profissionais de saúde, nomeadamente em Medicina. Também as especificidades deste conjunto de doenças não são muito abordadas em fóruns mais generalistas, nomeadamente de Medicina Dentária, Cuidados de Saúde Primários e médicos de Serviços de Urgência. Infelizmente, ainda são muitos os casos que são diagnosticados na sequência de idas de urgência ao hospital por complicações agudas de doenças avançadas (como por exemplo falta de ar, com necessidade de traqueostomia de urgência para que o doente consiga voltar a respirar, nos casos em que os tumores da laringe adquirem tamanhos tão grandes que impedem a passagem do ar). Este é o motivo pelo qual o Grupo de Estudos de Cancro de Cabeça e Pescoço organizou um webinar que decorrerá no dia 22.09.2021, destinado aos Médicos de Medicina Geral e Familiar, Médicos Dentistas e Médicos de Serviços de Urgência, sobre a importância do diagnóstico precoce do cancro de cabeça e pescoço.

Que opções terapêuticas existem para tratar o Cancro da Cabeça e Pescoço? E que diferença pode fazer o diagnóstico precoce?

Na doença diagnosticada precocemente (de pequeno volume, localizada) e na doença mais avançada, mas não metastizada (ou seja, sem metástases noutros órgãos, como o pulmão ou o osso), os tratamentos têm objetivo curativo. Enquanto que a doença localizada é tratada com uma modalidade de tratamento apenas, como a cirurgia ou radioterapia, a doença localmente avançada, como já referi na resposta à questão 2, é tratada com vários tipos de tratamento. Se nos focarmos numa das modalidades mais importantes, a cirurgia, esta é mais agressiva nos casos em que a doença é mais avançada (por exemplo, os casos de cancro das cordas vocais, que fazem parte da laringe, quando são diagnosticados em fase inicial podem ser tratados com cirurgia laser, poupando a função da fala, enquanto que, em fase mais avançada, poderão requerer uma laringectomia total, que obriga à traqueostomia, ou radioterapia radical, que obriga a 7 semanas de tratamentos diários). Em relação à diferença no prognóstico, é substancial: a probabilidade de cura, no caso da doença localizada, é de cerca de 80 a 90%, diminuindo para cerca de 50% na doença localmente avançada.

Nos casos de doença metastizada, o objetivo do tratamento é paliativo, englobando o aumento da sobrevivência e da qualidade de vida. Aqui os tratamentos são medicamentos, desde a quimioterapia, a terapêuticas-alvo e a imunoterapia – que estimula o sistema imunitário do doente a lutar contra o seu próprio tumor. Com os avanços na terapêutica dirigida à doença, e também, nos tratamentos de suporte, a sobrevivência esperada destes doentes tem vindo a aumentar. Se há 10 anos atrás falávamos de meses, atualmente falamos de anos.

No âmbito, da Campanha Make Sense, foi desenvolvido um inquérito para perceber de que forma este tipo de cancro impacta a vida dos sobreviventes. Quais as principais conclusões retiradas deste trabalho?

No âmbito desta campanha internacional, que já vai na sua 9ªedição, a Sociedade Europeia de Cancro de Cabeça e Pescoço promoveu este inquérito, destinado aos sobreviventes, para avaliar o impacto do cancro da cabeça e pescoço no bem-estar físico, social e profissional dos sobreviventes e a disponibilidade atual de recursos de apoio.

Duzentas e 29 pessoas, de 12 países, um dos quais Portugal, responderam. Se a grande maioria afirmou que a doença teve algum impacto negativo ou forte no seu bem-estar, em Portugal foram 56% que referiram um impacto fortemente negativo.

Em relação ao bem-estar emocional, metade dos inquiridos referiu como sentimento mais prevalente o medo do futuro/recorrência.  No bem-estar físico, entre 40 a 50% referiram um impacto negativo nas funções da fala e da ingestão de alimentos bem como na aparência e na energia (são doentes que passam a viver com fadiga crónica). Por fim, em Portugal, 41% consideram que o cancro da cabeça e pescoço tem um impacto fortemente negativo a nível profissional e financeiro, e 68% sentem que não têm acesso fácil a enfermeiros e assistentes sociais especializados no pós-tratamento.

Estes dados têm que nos fazer pensar, enquanto profissionais de saúde, mas também enquanto sociedade. O GECCP defende que a inclusão da reabilitação física, psicológica, cognitiva e funcional no plano terapêutico do doente, desde o seu diagnóstico, poderá reduzir significativamente estes números.

Na sua opinião, o que deveria mudar ou melhorar de forma a possibilitar, não só que estes doentes fossem identificados em fases precoces da doença, como aceder a cuidados de saúde após diagnóstico/tratamento?

Tanto para a deteção precoce como para o acesso aos melhores cuidados e melhor sobrevivência pós-tratamentos, julgamos ser necessário atuar a vários níveis. A nível da população geral, informando e sensibilizando. A nível dos profissionais de saúde que encaminham os doentes, em função do grau de suspeição, formando e sensibilizando. A nível dos Serviços hospitalares, promovendo a multidisciplinariedade alargada, que inclui as várias especialidades de diagnóstico e tratamento da doença, mas também as valências de suporte físico, social, cognitivo e psicológico, em articulação com a comunidade. A nível dos reguladores da saúde, criando circuitos específicos de financiamento e organização, não apenas por diferenciação técnico-científica das especialidades de diagnóstico e terapêuticas, mas também das áreas de suporte referidas; o acesso à reabilitação oral é um dos exemplos. A nível da reintegração na sociedade e profissional, a interligação com a comunidade e com os cuidados de saúde primários é fundamental.

No âmbito da Semana de Sensibilização para o Cancro da Cabeça e Pescoço, que mensagem gostaria de deixar?

A mensagem da campanha deste ano é muito clara – mantenha-se sensibilizado para o cancro da cabeça e pescoço, mesmo em tempos de pandemia. Esta mensagem é válida para a população em risco, nomeadamente quem tem hábitos tabágicos e consome bebidas alcoólicas em excesso, mas também para quem já teve um diagnóstico da doença e, ainda, para os profissionais de saúde que cuidam desta população.

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Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.