Entrevista| Transplante de Medula Óssea no tratamento da Síndrome de Sezáry: o que esperar?

«A complicação mais característica do transplante alogénico é o desenvolvimento de Doença de Enxerto contra o Hospedeiro»

Atualizado: 
09/08/2024 - 09:34
O transplante alogénico é o único tratamento curativo para a Síndrome de Sézary, no entanto, apenas alguns doentes são elegíveis para o receber. E, embora, não esteja associado a grandes riscos ou complicações, há cuidados que devem ser mantidos. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Ana Luísa Martins, especialista em Hematologia Clínica, da Consulta Multidisciplinar de Linfomas Cutâneos do Hospital de Santo António dos Capuchos – ULS São José, explica o que os doentes podem esperar deste procedimento, sublinhando que após o transplante "o doente está fortemente imunodeprimido".

Embora represente somente cerca de 5% dos linfomas cutâneos, a Síndrome de Sézary associa-se a mau prognóstico, que se traduz em diminuição da sobrevivência e da qualidade de vida. O transplante de Medula Óssea surge como a única opção curativa desta patologia, no entanto nem todos os doentes são elegíveis para receber este tratamento. Porquê?

O transplante de Medula óssea alogénico (da medula óssea de outra pessoa) está indicado em doentes com menos de 70 anos com Síndrome de Sézary ou Micose Fungóide em estadio avançado. Para serem considerados elegíveis para transplante, estes doentes são submetidos a uma avaliação pré-transplante abrangente que inclui avaliação das comorbilidades, função de órgãos como o coração e os pulmões e fatores psicossociais. Esta avaliação tem como objetivo estimar a capacidade de um doente de tolerar o transplante (não só o procedimento, como todas as alterações na vida que se seguem) e o risco-benefício deste tratamento comparado com outros tratamentos sistémicos.

Qual o percurso do doente até à realização do transplante? Que cuidados deve este ter? 

O médico hematologista do doente, idealmente integrado numa equipa multidisciplinar de linfomas cutâneos, deve avaliar a elegibilidade do doente para transplante quando inicia o primeiro tratamento sistémico. Se for considerado elegível, são realizadas provas de função respiratória e um ecocardiograma para avaliar o sistema cardiovascular e respiratório. É colhido sangue do doente para tipagem dos antigénios HLA que serão depois comparados com os dos potenciais dadores. É preenchido um questionário para avaliar potenciais dadores familiares (irmãos, preferencialmente). Caso o doente não tenha irmãos, é procurado num registo internacional um dador compatível com o mesmo. Durante todo este procedimento, o doente cumpre tratamento sistémico para a síndrome de Sézary. Quando estiver em remissão, e de acordo com a disponibilidade de internamento da UTM, é internado para realizar o transplante.

O doente deve preparar-se psicológica e fisicamente para este procedimento, mantendo-se calmo e esclarecido, cumprindo uma alimentação variada e nutritiva e um nível de atividade física adequado de modo a não perder massa muscular e capacidade física, os quais são importantes para suportar o transplante. Pode ser recomendado o acompanhamento por uma nutricionista com experiência em doentes hemato-oncológicos para ajudar neste percurso.

Ainda há pessoas que pensam que o transplante de medula óssea é um processo complicado e assustador. É verdade? Em que consiste este tratamento e quanto tempo requer de internamento hospitalar?

O transplante de medula óssea alogénico é um processo menos complicado e com menos riscos do que antigamente. Ainda assim, é um procedimento complexo, que exige internamento durante cerca de um mês num quarto de isolamento numa UTM. Inicialmente, é administrado ao doente o condicionamento, inclui quimioterapia e, em alguns centros de transplante, radioterapia (Banho de electrões). Este condicionamento tem o objetivo de matar células de Sézary que tenham ficado em reservatórios no corpo do doente e matar a medula óssea deste, de modo a poder receber posteriormente a nova medula. As células progenitoras hematopoiéticas colhidas do dador são infundidas, como se fosse uma transfusão de sangue, e após algumas semanas começam a produzir todas as células do sangue do doente em número suficiente para o doente ter alta.

Apesar de ser o único tratamento que oferece a possibilidade de cura a estes doentes, não é isento de riscos. Quais as complicações mais frequentemente associadas ao transplante de medula óssea?

Após receber a nova medula, nas primeiras 3 semanas, o doente fica sem defesas e surgem algumas complicações: febre, infeções, diarreia, mucosite. Estas complicações são esperadas e rapidamente tratadas. Por não produzir suficientes células do sangue durante esse tempo, são necessárias transfusões de unidades de concentrado de eritrócitos e de plaquetas. Raramente, as complicações podem ser graves e obrigar a internamento em unidades de cuidados intensivos para ventilação mecânica ou suporte cardiovascular e até provocar a morte.

A complicação mais característica do transplante alogénico é o desenvolvimento de Doença de Enxerto contra o Hospedeiro. Esta consiste no reconhecimento e ataque das células do sistema imunitário da nova medula (enxerto) contra o corpo do doente (hospedeiro). Pode ser aguda ou crónica. A aguda desenvolve-se ainda durante o internamento e geralmente é de menor gravidade. A doença de enxerto contra hospedeiro crónica desenvolve-se mais tardiamente e tem vários graus de gravidade, podendo afetar qualquer órgão do corpo. O tratamento é com imunossupressores e corticoides de acordo com o órgão afetado e a gravidade.

O que é que o doente pode esperar depois de realizar o transplante e quais os principais cuidados a ter?

Após o transplante, o doente está fortemente imunodeprimido. Deve ter cuidado para se proteger ao máximo e evitar apanhar infeções. Por exemplo, deve usar máscara quando for ao Hospital e locais com muitas pessoas, não deve contactar com pessoas doentes, deve manter condições de higiene e assepsia redobradas na sua casa. Alguns alimentos estão proibidos neste período pós-transplante, pelo seu risco infecioso. Todas as recomendações a este respeito são sempre fornecidas pelos profissionais de saúde da UTM antes da alta, de modo a que o doente e os seus familiares se possam preparar atempadamente.

Como é a recuperação deste procedimento? No que diz respeito às manifestações clínicas da Síndrome de Sezáry, as melhorias são rápidas?

A recuperação depende das complicações, mas em geral, após as primeiras 3 semanas pós-transplante, a recuperação é rápida. Como a maioria dos doentes são transplantados com a Síndrome de Sézary em resposta completa, não é suposto haver manifestações da mesma. Nos doentes com resposta parcial, pode haver uma melhoria gradual das manifestações durante os primeiros meses após transplante, o que representa um efeito das células do dador contra os linfócitos da doença (efeito enxerto contra leucemia).

Nos doentes em que a Síndrome de Sézary recidiva após o transplante, a realização de infusão de linfócitos do dador (DLI) associa-se a boas taxas de resposta. Os linfócitos do dador vão reconhecer as células de Sézary como estranhas e atacá-las (efeito enxerto contra leucemia). Caso não seja suficiente, podem ser utilizados tratamentos para a síndrome de Sézary como os que se utilizam em doentes não-transplantados.

Quanto ao acompanhamento destes doentes, após a realização do transplante, como se processa? 

Após a alta da Unidade de Transplante, os doentes passam por um processo de reconstituição imune, caracterizado por imunodeficiência profunda e prolongada apesar de terem contagens sanguíneas normais. São medicados com antivirais, antifúngicos e antibacterianos profiláticos e com imunossupressores orais durante um período prolongado e que depende das complicações que desenvolvem. Por isso, são acompanhados regularmente com análises e consulta com os médicos da unidade de transplante. Durante os primeiros 2 anos, a nova medula óssea está a aprender a tolerar o hospedeiro e a montar a resposta imunitária contra os vírus e bactérias que provocam doenças infeciosas. Por isso, os doentes transplantados têm que cumprir um calendário de vacinação individualizado para ganharem imunidade com segurança.

No âmbito deste tema, quais são as principais ideias-chave que devemos reter?

  • O transplante de medula óssea alogénico está indicado nos doentes com S. Sézary e Micose Fungóide em estadio avançado com menos de 70 anos e sem comorbilidades significativas.
  • O transplante não é um procedimento isento de riscos e obriga a internamento em unidades especializadas e a um acompanhamento para o resto da vida.
  • O transplante alogénico é o único tratamento curativo para a S. Sézary, mas só os doentes com resposta completa ou resposta parcial com pouco volume tumoral são elegíveis para este procedimento.
 
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Dra. Ana Luísa Martins