Entrevista: Dra. Sílvia Jacob

A Alergia à Proteína do Leite de Vaca “pode colocar em risco a vida da criança”

Atualizado: 
08/04/2022 - 11:24
“A intolerância à lactose não é a mesma coisa que a Alergia à Proteína do Leite de Vaca” sublinha Sílvia Jacob, Pediatra no Hospital de São João, no Porto, em entrevista ao Atlas da Saúde, chamando a atenção para o tema. Enquanto na “APLV temos uma resposta imunológica/alérgica contra uma proteína que poderá desencadear reações mais ou menos graves consoante o mecanismo envolvido”, entre elas a mais grave: a anafilaxia, na intolerância à lactose existe dificuldade em digerir este açúcar, o que, na maioria das vezes, se traduz em desconforto gastrointestinal.

A alergia à proteína do leite de vaca, conhecida como APLV, é a alergia alimentar mais comum durante a infância, estimando-se que afeta 2,2% das crianças no primeiro ano de vida. No entanto, este não é um tema muito abordado e pouco saberão em que consiste, podendo até mesmo confundi-la com uma intolerância. Neste sentido, começo por perguntar o que é a APLV e quais as causas associadas?

Nos últimos anos têm sido postuladas várias hipóteses com o intuito de explicar o aumento que se tem verificado não só nas alergias alimentares como a APLV, como nas doenças alérgicas como um todo. Uma das primeiras hipóteses, foi a Hipótese Higiénica colocada em 1989 num artigo publicado por Strachan DP que pústula que a exposição diminuída a agentes infeciosos/microbianos devido à melhoria das condições standard de higiene, faz com que ocorra uma reação hipersensitiva do sistema imunitário contra substâncias normalmente inofensivas do ambiente, passando este sistema imunitário a reagir a alergénios alimentares ou aerolaergenios (p.ex. pólens, ácaros) quando anteriormente não o fazia. Posteriormente foi colocada a Hipótese da Vitamina D, em 1999 por Wjst and Dold. Estes autores defendem que o facto de existir uma prevalência superior de doenças alérgica em países mais distantes da linha equatorial e nas crianças nascidas nos meses de Inverno se deve a uma menor exposição solar e a níveis consequentemente mais baixos de Vitamina D. A última hipótese colocada, em 2012 por George Du Toit, foi a Hipótese da Dupla exposição. Através de vários artigos publicados, este autor conseguiu demonstrar que o desenvolvimento da alergia ocorria através da exposição a alergénios (alimentares) através da pele antes que o sistema imunitário os tivesse reconhecido como inocentes através do trato gastrointestinal.

Em resumo, a exposição a um microbioma mais diversificado, níveis adequados de exposição solar/vitamina D e uma introdução alimentar precoce poderá ter um efeito protetor no desenvolvimento de doenças alérgicas.

A partir de que idade esta alergia se pode manifestar?

A APLV surge mais frequentemente no primeiro ano de vida. Para que ocorra uma reação alérgica tem que haver uma primeira exposição ao alimento, normalmente isenta de sintomas, com o desenvolvimento de sintomas nas exposições seguintes. Isto explica o porquê de, no caso da APLV, termos com frequência bebés que tiveram a necessidade de ingerir leite de fórmula nos primeiros dias de vida por dificuldades iniciais na amamentação, tendo aqui um primeiro contacto com esta proteína. Muitas das vezes estes bebés passam a fazer leite materno exclusivo em casa nos meses seguintes, e apresentam sintomas com a primeira papa láctea – quando ocorre uma segunda exposição.

Quais os principais sintomas da APLV? É verdade que existem sintomas imediatos e sintomas tardios? Que sintomas são estes?

Temos que ter em mente que a alergia alimentar se divide em 3 grandes grupos e os sintomas variam dependendo do tipo de resposta imunológica envolvida, esta pode ser IgE mediada, não-IgE mediada (mediação celular) ou mista. No grupo das alergias IgE mediadas, como o próprio nome indica há a produção de anticorpos IgE contra o alimento específico o que vai fazer com que os sintomas surjam minutos até no máximo duas horas após a sua exposição. Aqui podemos ter o aparecimento de urticaria (o mais frequente), sintomas respiratórios (p.ex. tosse, dificuldade respiratória), sintomas gastrointestinais (p.ex vómitos e diarreia) ou mesmo o desenvolvimento de anafilaxia. No grupo das alergias não-IgE mediadas os sintomas são um pouco mais tardios. Aqui não temos a produção de anticorpos mas sim uma resposta celular, que se pode traduzir na ocorrência de vómitos 1-4 horas após a exposição ao leite, ou no desenvolvimento de dejeções raiadas em sangue dias ou semanas após a exposição à proteína do leite de vaca. No grupo misto temos uma resposta imunológica celular com alguns sintomas que poderão ser justificados pela presença de anticorpos IgE. Dentro deste grupo podemos incluir alguns casos de dermatite atópica e também a esofagite eosinofílica.

Em matéria de complicações, quais as consequências mais graves desta alergia?

A APLV tem um impacto importante não só na criança como também na família. A reação mais temida é sem dúvida a ocorrência de uma anafilaxia, que pode colocar em risco a vida da criança. Este receio/risco faz com que exista um impacto social, económico e psicológico. Estas família evitam eventos sociais/festas onde não consigam controlar os alimentos que estão expostos, têm uma sobrecarga económica não só pelo facto dos leites e restantes alimentos adequados para estas crianças serem mais caros como também pelo próprio absentismo laboral que por vezes ocorre se o infantário/escola não conseguirem assegurar as condições de segurança necessárias. Tudo isto tem um impacto psicológico importante tanto na criança que convive menos e ingressa mais tarde no infantário ou escola, como nos pais que têm níveis de ansiedade superiores.

Qual a sua relação com outras doenças atópicas?

A verdade é que as doenças atópicas acabam por estar todas interligadas. A alergia alimentar é uma das quatro manifestações da chamada marcha atópica. Esta, caracteriza-se pelo aparecimento nos primeiros meses de vida de dermatite atópica que se caracteriza por um defeito na barreira cutânea que pode facilitar a ocorrência de sensibilização a alergénios alimentares e a aeroalergénios, podendo assim ser seguida pelo aparecimento de alergia alimentar, rinite e asma alérgica.

Como é feito o seu diagnóstico?

Para o diagnóstico a história clínica é fundamental. Quando os sintomas que a criança apresenta são sugestivos de uma alergia IgE mediada podemos realizar testes cutâneos ou doseamento de IgEs específicas para o alimento através da colheita de analises sanguíneas. Nos testes cutâneos é aplicado o extrato do alergénio na pele, realizado um “prick” com uma pequena lanceta, aguarda-se entre 15 a 20 minutos para se verificar se ocorre ou não o aparecimento de uma pápula com mais de 3mm o que traduz, na grande maioria dos casos, a presença de anticorpos IgEs específicos em circulação. Os testes cutâneos não podem ser realizados em doentes que estejam a tomar anti-histamínicos pois estes vão bloquear a resposta. Quando se opta por realizar colheita sanguínea para se fazer o doseamento de IgEs específicas para o alimento não é necessário que o doente suspenda o anti-histamínico.

No caso das alergias não IgE mediadas (mediação celular), não há atualmente nenhum marcador analítico para o seu diagnóstico. Neste tipo de alergia o aparecimento de sintomas de forma consistente após a exposição ao alimento facilita o diagnóstico.

Em caso de dúvida diagnóstica poderá ser realizada uma prova de provocação oral. Esta consiste na administração de leite em doses crescentes, sempre em contexto hospitalar, para que possa ser realizada uma vigilância apertada dos sintomas e se possa atuar de imediato caso exista o aparecimento de algum sintoma.

Como se trata? Que cuidados ou medidas devem ser mantidos? Quais os alimentos proibidos?

Na APLV, independentemente do mecanismo imunológico envolvido, a dieta de evicção é a opção, principalmente se a criança for muito pequena. Desde 2011 que esta regulamentado (Regulamento nº 1169/2011) a obrigatoriedade de no rótulo do alimento conter informações sobre a presença ou não dos principais alergénios alimentares. No caso do leite, poderá existir referência à sua presença através de outros nomes como “soro de leite” ou “caseína”. Infelizmente os problemas costumam surgir quando pessoas menos informadas, oferecem à criança alimentos processados que apresentam leite na sua composição (p.ex algumas marcas de fiambre, salsichas, ou mesmo alguns tipos de pão). Quando existe uma quebra na dieta de evicção e há o aparecimento de sintomas, estes, se ligeiros, poderão ser tratados com a administração de um anti-histamínico. Em casos mais graves se houver o desenvolvimento de uma anafilaxia é necessário proceder à administração intramuscular da caneta de adrenalina (Anapen® ou Epipen®).

É verdade que, na maioria dos casos, esta alergia resolve-se espontaneamente até aos 5 cinco anos de idade? Qual a explicação?

Os mecanismos exatos para que isto ocorra ainda não são completamente compreendidos. Estarão provavelmente relacionados com a maturação do sistema imunológico e com o papel que a microbiota intestinal poderá ter nesta resposta. A alergia é assim ultrapassada quando, imunologicamente, ocorre a aquisição natural de tolerância.

O que devemos saber para não confundir a Alergia à Proteína do Leite de Vaca com a Intolerância à lactose?

Na APLV temos uma resposta imunológica/alérgica contra uma proteína, que como referido anteriormente poderá desencadear reações mais ou menos graves consoante o mecanismo envolvido. Sendo uma resposta imunológica é imprevisível e não é dose dependente, ou seja, a ingestão de uma quantidade por vezes vestigial poderá provocar, em alguns casos, reações muito graves.

Na intolerância à lactose o que temos é uma dificuldade em digerir este açúcar – lactose – por um défice enzimático, ou seja, um défice de lactase. Este défice enzimático ocorre naturalmente após os 3 anos de vida numa percentagem significativa da população. Na intolerância à lactose os sintomas são limitados ao trato gastrointestinal, com distensão abdominal, aerocolia ou flatulência e são dose dependentes. O que significa que a grande maioria destes doentes tolera a ingestão de alimentos com lactose até um determinado patamar.

O risco para um doente com intolerância à lactose é significativamente menor em comparação a um com APLV.

Existem alguns mitos associados a este tema que importa esclarecer?

Na alergia alimentar os mitos andam a par com o preconceito. Muitos destes pais são vistos como exagerados e ansiosos. Há quem encare a dieta de evicção a que estes doentes têm que ser sujeitos a uma moda, desvalorizando e por vezes ridicularizando a necessidade de existir rigor na confirmação minuciosa dos rótulos e alimentos que são oferecidos à criança.

No âmbito deste tema, que ideia ou ideias-chave gostaria de deixar?

Penso que a ideia chave será mesmo a perceção de que a intolerância à lactose não é a mesma coisa que a APLV. São distintas tanto no nome (Intolerância VS Alergia) como na gravidade de manifestações que apresentam. Infelizmente a confusão entre estas duas entidades é frequente e ocorre não só no seio familiar como também em contexto escolar.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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